MEMÓRIA
No acervo de Chico Xavier, morto aos 92 anos, há desde dezenas de boinas, sua marca registrada, a milhares de livros
Foi-se o tempo em que visitar a casa de
número 145 na rua Dom Pedro I, em Uberaba, Minas Gerais, significava
imergir no universo simples e austero de Chico Xavier, o maior médium
brasileiro de todos os tempos. Hoje, quem visita o endereço que já foi
destino de centenas de milhares de devotos pode nem reconhecer o prédio
usado como residência e centro espírita do líder religioso de 1975 a
2002, ano de sua morte. Descaracterizado por reformas aparentemente
bem-intencionadas, mas malconduzidas, o prédio está muito diferente. A
fachada, originalmente pintada de azul-claro e recortada por portões
azul-anil, foi substituída por um muro alto e abrutalhado, coberto de
rebuscadas molduras de gesso, janelas envidraçadas, placas publicitárias
e um letreiro em luz néon que reproduz a assinatura do médium. Mudanças
que desrespeitam as mais básicas técnicas de preservação da identidade
histórica e cultural. “A casa está passando por intervenções
inapropriadas”, alerta a procuradora da República Raquel Cristina
Rezende Silvestre, da comarca de Uberaba.
Mas não só a casa está correndo perigo. Raquel é autora de uma demanda
civil pública ajuizada no fim de 2011 que pede o tombamento imediato,
tanto da residência quanto do acervo de Chico Xavier, hoje guardado
dentro do imóvel, que também faz as vezes de museu e moradia do filho
adotivo e administrador do espólio do espírita, Eurípedes Higino dos
Reis. Composto por milhares de livros, esculturas, móveis, documentos,
roupas e condecorações, o conjunto de objetos deixados por Chico nem
sequer foi inventariado. O controle do que está lá foi feito com base na
memória visual de Reis. Assim, se um livro autografado pelo religioso
for perdido, se uma das muitas boinas do museu sumir ou se um móvel for
danificado, será difícil identificar o problema, já que, na prática, os
objetos armazenados ou o estado em que eles se encontram são
desconhecidos.
E como se o sistema falho, senão inexistente, de catalogação já não
fosse o suficiente, os itens hoje expostos no museu Chico Xavier não
seguem nenhum protocolo museográfico que proteja o acervo contra roubos e
descaracterizações. Em alguns casos, o que fica exposto está mais
amontoado do que, de fato, exibido. “Todos foram inquestionavelmente
omissos em adotar medidas protetivas”, reforça a procuradora Raquel, que
acionou não só Reis, mas também o município de Uberaba, o Estado de
Minas Gerais, a União e órgãos de proteção do patrimônio público, como o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
(Iepha/MG).
Mas há quem discorde da avaliação da procuradora. Geraldo Lemos,
administrador da casa de Chico Xavier em Pedro Leopoldo, também em Minas
Gerais, e amigo de Reis, tem suas dúvidas quanto à proposta de passar
para o Estado a responsabilidade de cuidar do acervo do médium. “Tem
tanto museu que é administrado pelo governo, mas que está completamente
abandonado”, afirma. “Em última instância, acho que deixar o acervo de
Chico nas mãos dos espíritas, que são os maiores interessados em
preservá-lo, é a melhor alternativa.” A amiga da família de Chico e
vizinha da casa na rua Dom Pedro I, Kátia Maria, lembra ainda que o
médium nunca gostou que mexessem em suas coisas. “Sempre respeitaram
essa exigência e espero que continuem respeitando”, diz. Sobre as
inegáveis mudanças na fachada, ela argumenta que foram todas “mudanças
para melhor”.
Mesmo conhecendo esses argumentos, a procuradora continua convencida de
que o tombamento é necessário. A urgência do caso é tamanha que ela
chega a pedir a chamada antecipação da tutela na demanda civil. Se o
juiz aceitar o pedido, esse instrumento jurídico, que pode ser usado
quando a integridade de um patrimônio cultural corre risco de sofrer
danos irreparáveis, acelerará o processo de tombamento. “Ainda assim, o
bem não passará ao patrimônio público e continuará sendo privado”,
afirma Raquel. “Ele apenas sofrerá limitações às modificações que o
descaracterizem.” Se os envolvidos entrarem em acordo, todo o imbróglio
deve se resolver imediatamente. Se isso não acontecer e não houver a
antecipação de tutela, uma decisão final sobre o caso pode levar meses
ou anos para sair. Até lá, o acervo de um dos maiores líderes religiosos
do Brasil seguirá em risco.