Por Afonso Camboim (mestre em Teoria Literária)
O Projeto de Lei n° 6.162/2009, de autoria do Senador Cristovam Buarque, insere o Esperanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, como disciplina facultativa. Textualmente, Art. 26, § 7°: “O Esperanto constituirá componente curricular facultativo da grade escolar do ensino médio, sendo sua oferta obrigatória [no prazo de 3 anos], caso a demanda justifique”. Com a iminente aprovação da Câmara dos Deputados e a aguardada sanção da Presidenta Dilma, poucas vezes na história um passo tão pequeno terá representado um salto tão grande.
O problema oriundo da diversidade de línguas, que sempre inviabilizou a plena liberdade de expressão no contexto mundial, pode ser superado. A comunicação verbal direta entre todos os indivíduos, um dos mais antigos desafios da espécie humana, pode tornar-se realidade. O experimento científico que comprova essa possibilidade já foi amplamente testado num “laboratório” de 125 anos, chamado comunidade esperantista internacional. Isto é fato. Evidentemente, uma conquista dessa magnitude só se consolida se cada povo, falante nativo de uma determinada língua, decidir fazer a sua parte, a fim de coroar os esforços da coletividade humana no sentido de estabelecer um segundo código linguístico, que faculte a qualquer cidadão o direito de dialogar diretamente com qualquer outro, em qualquer parte do mundo. Em sendo assim, dominando apenas duas línguas – uma da sua nação e outra da internacionalidade – o cidadão terá conquistado o pleno direito à liberdade de expressão. O Brasil, mediante um simples parágrafo na LDB, mais uma vez dá exemplo ao mundo, e decide começar a fazer a sua parte.
Para atender meta tão significativa para a humanidade, não teria bastado a UNESCO ter emitido duas resoluções (1954 e 1985), assinadas pelo Brasil e pelos demais países-membros, conclamando os povos à introdução do Esperanto em seus sistemas de ensino; não teria bastado o heroico esforço de milhões de voluntários esperantistas e de milhares de pioneiras instituições mundo afora; não teria bastado, sequer, L. L. Zamenhof ter disponibilizado a Língua Internacional há mais de um século. Para atingir tal meta é imprescindível que cada governo nacional, como alguns de algum modo já vêm fazendo e como agora faz o Brasil, dê um passo concreto: resgate o Esperanto da marginalidade que negligentemente ou discriminatoriamente lhe tem sido imposta e garanta a essa interlíngua tão amplamente testada o status que, afinal, é garantido pela lei a qualquer uma das línguas estrangeiras modernas. Esse status é o que a LDB, num posicionamento vanguardista perante as nações, passa a garantir.
O antigo paradigma do ensino de línguas estrangeiras (isto está cabalmente demonstrado pela História e pelo bom senso) jamais facultaria o vislumbre da comunicação verbal direta irrestrita. Nesse paradigma, o problema da incomunicabilidade verbal direta entre os povos está fadado a perdurar indefinidamente, já que é tão inviável a um ser humano falar os mais de 5 mil idiomas existentes no planeta quanto ao conjunto de todos os povos é inimaginável o consenso pela adoção mundial da língua de um determinado povo. Reafirmando esse impasse, a “solução” do poliglotismo e das traduções nunca passou de paliativo oneroso, cuja ineficácia se evidencia na mesma proporção em que novas tecnologias de comunicação e transporte permitem o intercâmbio direto entre as pessoas em todo o mundo. O “recurso tecnológico” de uma língua internacional (curiosamente criado – e incrivelmente desprezado pelos governos – antes da aviação e das telecomunicações) é hoje a única pendência para a solução completa desse problema. Ao oficializar o ensino do Esperanto (que existia no país como um sub-cidadão sem certidão de nascimento) o Brasil adianta-se numa perspectiva concreta de solução.
Com o Esperanto na LDB, portanto, o Brasil coloca-se efetivamente na vanguarda dos povos, à frente da própria União Europeia, que, com suas 23 línguas oficiais para 27 países, apresenta inquestionavelmente o cenário ideal (dada a premência) para adoção de uma interlíngua. Embora, diga-se de passagem, conte com iniciativas pontuais avançadas (como as da Hungria, Bulgária, entre outras), a UE, morosa em seu processo de oficialização do ensino do Esperanto, continua amargando gastos homéricos e perdas incalculáveis, num cenário de mini-babel. Mais cedo ou mais tarde, pois, deverá seguir o exemplo brasileiro. Já o Brasil, sem motivos internos para maiores esforços, uma vez que conta com o privilégio do idioma Português numa vastidão continental, antecipa-se no apoio efetivo a essa interlíngua viva, o que pressupõe profunda consciência da condição de “aldeia global” que cada vez mais configura o mundo contemporâneo.
Em sintonia com o adágio de que uma grande caminhada começa com o primeiro passo, o governo brasileiro, ao reconhecer oficialmente a “cidadania” do Esperanto no contexto das línguas, confere ao cidadão brasileiro em geral o direito de estudá-lo e de aprendê-lo, desmarginalizando num só ato a língua e o falante. Inaugura, assim, a perspectiva legítima de futuros professores Licenciados em Esperanto, de futuros vestibulares ou concursos públicos com a opção Esperanto, e, sobretudo, de futuros intercâmbios de estudantes brasileiros que terão conquistado o bilinguismo suficiente: “para cada povo, sua língua; para todos os povos, uma interlíngua” – neutra, com reciprocidade.
Embora, do ponto de vista dos expoentes intelectuais da humanidade, raciocinar com uma possível solução definitiva para o problema da comunicação verbal direta internacional não seja algo novo, é simplesmente inovador, do ponto de vista da governança, raciocinar nessa linha, implicitamente questionadora dos paliativos em vigor. O paliativo da tradução, aliás, tem sua eficácia categoricamente questionada desde há muito, pela máxima traduttore, traditore (tradutor, traidor). Quanto ao poliglotismo, valeria a pena citar ponderação “profética” de Nietzsche, um dos mais eminentes pensadores de todos os tempos:
"267. Aprender muitas línguas enche a memória de palavras, em vez de fatos e ideias, quando a memória é um recipiente que em cada indivíduo só pode acolher uma medida certa e limitada de conteúdo. Além disso, o aprendizado de muitas línguas prejudica por fazer acreditar que se tem habilidades, e realmente confere algum prestígio sedutor no trato social; também prejudica indiretamente ao obstar a aquisição de conhecimentos sólidos e a intenção de ganhar de maneira séria o respeito das pessoas. Por fim, é como um golpe de machado na raiz do refinado sentimento da língua que se tenha do idioma materno: ele é incuravelmente ferido e arruinado. Os dois povos que produziram os maiores estilistas, os gregos e os franceses, não aprenderam línguas estrangeiras. - Porém, como as relações entre os homens devem se tornar cada vez mais cosmopolitas e como agora um comerciante estabelecido em Londres, por exemplo, já tem de se comunicar por escrito e oralmente em oito idiomas, aprender muitas línguas é sem dúvida um mal necessário; que, chegando ao extremo, forçará a humanidade a encontrar um remédio: e num futuro distante haverá para todos uma nova língua, primeiro como língua comercial e depois como língua das relações intelectuais, tão certo como um dia existirá navegação aérea. Pois com que finalidade a ciência linguística teria estudado por um século as leis do idioma e aquilatado o que é necessário, valioso e bem-sucedido em cada língua?" (Friedrich Nietzsche - 1844/1900 -, Aforismo 267, in Humano, demasiado humano - 1878 -, Companhia das Letras, São Paulo, 2000). - Grifo nosso.
Quanto ao paliativo do inglês, além das nefastas implicações de ser idioma étnico, favorecedor da hegemonia de alguns povos sobre os demais, essa língua padece das anomalias comuns a todas as línguas “naturais”, ou seja, diferentemente do Esperanto, não foi dada à luz mediante planejamento inteligente. Não pode ser cogitada, portanto, como verdadeira solução nesse contexto, pois além de não suprimir a necessidade das traduções nem do poliglotismo, não tende historicamente a se generalizar como segunda língua de todos os povos. Ao inserir o Esperanto na LDB, finalmente, os governantes brasileiros investem na antecipação do “futuro distante” de Nietzsche, e dão um passo fundamental para a superação desses paliativos, hoje ainda imprescindíveis.