Nem
é preciso apelar para os exemplos trágicos de terrorismo para
reconhecer o impacto negativo do extremismo religioso no mundo.
Fundamentalistas islâmicos se suicidam e matam em cidades como Madri e
Londres. Extremistas cristãos nos Estados Unidos matam médicos que
praticam aborto. Fundamentalistas judeus tomam terras dos palestinos sob
alegação de que Deus concedeu só a eles esse direito. Hindus queimam
mesquitas muçulmanas na Índia, atacam sikhs. Budistas atacam muçulmanos
em Myanmar ou Burma, mataram mais de 200 muçulmanos nos últimos 12
meses. São exemplos fortes do que a fé religiosa ou a distorção dela
pode representar. O que tem de ruim ou de bom, religião representa mais
do que isso. Pode dar sensação de transcendência, de valorizar algo
maior que o indivíduo, um conforto espiritual. Disso tudo nos fala Karen
Armstrong, uma das escritoras mais lidas no mundo no tópico de
religião, sua importância, seu impacto e suas distorções. Ela não é
teóloga, e sim alguém que popularizou e tornou mais acessível à
discussão de questões religiosas em livros, artigos, palestras que ela
faz pelo mundo.
Silio Boccanera — Há um padrão de
comportamento social adequado, ou de boas maneiras, nas sociedades
educadas, que diz: “Religião não se discute, pois é uma questão íntima
demais, particular demais.” Nós deveríamos discutir e conversar sobre
religião, como fazemos com qualquer assunto?
Karen Armstrong — Com certeza, devemos falar
de religião. Não há por que colocá-la em um gueto peculiar próprio e
dizer que é proibido discuti-la publicamente. A ideia de que ela é
absolutamente pessoal, particular e interna é uma invenção ocidental do
início da Idade Moderna. A ideia de que “religião”, como algo separado
de outros aspectos da vida é uma grande inovação e parte do processo de
modernização europeu. Até então, não existia uma palavra que definisse a
religião dessa maneira. Ela permeava todos os aspectos da vida. Os
romanos, por exemplo, não tinham uma parte da vida separada chamada
“religião”. Não havia um dia especial para adorar os deuses. Eles não
participavam de atividades “especialmente religiosas”, que não fossem
políticas, militares ou sociais.
Silio Boccanera — Era como todo o resto.
Karen Armstrong — E isso é válido para todas
as religiões do mundo. Nenhum outro povo ou cultura tinha um conceito
que corresponda à religião da maneira como temos hoje. Assim, “dïn”, por
exemplo, a palavra árabe, muitas vezes é traduzida como “religião”,
mas, na verdade, significa “seu estilo de vida”. O conjunto de seu
estilo de vida: social, político, econômico.
Silio
Boccanera — Ao mesmo tempo, temos essas interpretações, especialmente
vindas de livros religiosos, livros sagrados, que funcionam quase como
um ditame para explicar a vida. A senhora leu a bíblia, escreveu sobre
ela. As pessoas dizem: “Leia a bíblia, todas as explicações científicas
do mundo estão lá.” Ou seja, o mundo foi criado em uma semana, de uma só
vez, todas as espécies apareceram, ele existe há cerca de 6 mil anos.
Mas a ciência, obviamente, nega isso tudo.
Karen Armstrong — Claro. E, mas uma vez, até o
século XVI, ninguém lia o primeiro capítulo da bíblia, o Gênesis, como
um relato literal das origens da vida. Santo Agostinho, que pode ser
descrito como fundador do cristianismo ocidental, disse que, se um texto
das escrituras contraria a ciência, ele deve ser reinterpretado de uma
maneira alegórica. Até a Reforma Protestante, no século XVI, as pessoas
eram encorajadas a ler a Bíblia uma vez de maneira literal, para ver o
que era, e uma segunda vez, identificando o sentido alegórico, dando a
ela um sentido místico e um moral, que deveria ser aplicado a vida atual
de cada um, trazendo algo novo para aquela situação.
Silio
Boccanera — Essa interpretação literal dos livros sagrados — a Bíblia, o
Alcorão e outros livros sagrados — pode ser muito prejudicial e tem
implicações práticas. Vemos fundamentalistas cristãos interpretando
literalmente o que a Bíblia diz sobre criacionismo, que a senhora
mencionou. Vemos fundamentalistas judeus, que alegam ter direito a todo o
território palestino, pois assim disse Deus.
Karen Armstrong — O problema é que, se você
analisar esses textos, eles são muito contraditórios e qualquer leitura
dos textos sagrados será extremamente seletiva. Eu os vejo como
documentos humanos. A Bíblia, por exemplo, não é apenas um texto, é uma
biblioteca de textos escritos em mil anos por diferentes escritores. Há
nela mensagens totalmente contraditórias. Na Bíblia, há mensagens que
dizem que os judeus não devem achar que a Palestina é a terra deles.
Então, o que se faz é um exercício altamente seletivo. Eu acho que, se
eu fosse budista, chamaria essa interpretação literal de “inábil”. Ela
não ajuda e pode ser extremamente danosa, além de não ser guiada pelo
princípio da caridade. E eu gostaria de citar Santo Agostinho novamente.
Ele dizia que, se um texto religioso contradiz o dever da caridade e
parece promover o ódio, mais uma vez, ele deve ser reinterpretado,
recebendo uma interpretação alegórica que nos leve em direção à caridade
e amor ao próximo.
Silio Boccanera — Isso nos faz pensar
no Alcorão, por exemplo. Segundo a interpretação literal do Alcorão, as
mulheres são seres inferiores, os homens têm direito de bater nelas. Os
fiéis têm direito de matar os infiéis. Os reformistas dizem que ele
deveria ser lido no contexto de quando foi revelado, quando a religião
estava sendo atacada, e tudo aquilo diz respeito àquela época. E as
pessoas o aplicam a hoje.
Karen Armstrong — Mais uma vez, acho que os
muçulmanos adotaram o costume ocidental de ler a Bíblia literalmente.
Essa literalidade se espalhou, e isso vem, principalmente, da Arábia
Saudita. O islã saudita, o islã wahhabista, foram uma resposta a
condições particulares da Península Arábica no século XVIII. Em termos
cristãos, nós chamaríamos isso de “heresia”. Isso contradiz
fundamentalmente os ensinamentos islâmicos e os sauditas acabaram por
espalhá-los pelo mundo todo, o que foi um desenvolvimento muito
equivocado. O próprio profeta Maomé, na Hadith, se posiciona
contrariamente à violência contra a mulher. E, nesse ponto, ele chocou
seus contemporâneos, típicos machos alfa que se sentiam no direito de
bater nas mulheres.
Silio Boccanera — Alguns estudiosos
muçulmanos acham que o Islã precisa de uma reforma, de uma renovação.
Isso deveria acontecer agora, com a experiência dos muçulmanos que vivem
no Ocidente, que têm sido influenciados por outras coisas. Qual é a sua
opinião?
Karen Armstrong — Que Deus não permita que a
reforma deles seja como foi a nossa! Foi um período terrível. Cerca de 8
mil pessoas foram mortas. Foi parte da modernização da Europa e não
desejo aquilo a ninguém. A última coisa de que precisamos é um Martinho
Lutero do islã, em minha opinião. Ele era um homem cheio de conflitos,
com algumas ideias muito radicais sobre as mulheres, os judeus etc. Mas o
islã tem vivido uma reforma contínua ao longo de sua história. Quando
as pessoas negam isso, eu me sinto constrangida, pois mostra uma grande
ignorância a respeito da história do islã, que tem se reinventado de
maneira contínua. Mas eu diria que esse processo estava em curso antes
do 11 de setembro. Eu participo frequentemente de debates com
muçulmanos, e sempre precisamos explicar sobre as mulheres, a jihad
etc. para pessoas que não sabem do que estão falando. Por isso, eles
continuam a agir de maneira defensiva. E eu acho que esse tipo de ataque
impede o progresso de desenvolvimento que estava acontecendo. E há
muitas teorias interessantes no mundo islâmico hoje, mas elas não chegam
às mídias dominantes.
Silio Boccanera — A senhora
mencionou dois exemplos em momentos diferentes da história: a violência
instaurada com a Reforma na Europa e os atentados do 11 de setembro.
Dois exemplos de violência ligada à religião. As pessoas poderiam dar
outros exemplos semelhantes. Nós temos visto os budistas atacarem os
muçulmanos em Myanmar. Hindus atacando muçulmanos e sikhs. Isso leva
muitas pessoas a dizerem que a religião é um fator de maldades, um
instrumento de violência, e que ela é danosa à sociedade. É um assunto
em voga.
Karen Armstrong — Eu estou escrevendo um livro
sobre isso e talvez possamos falar disso daqui a alguns anos. Mas eu
diria que o mal está em nós. Cada um de nós é capaz de fazer o mal, de
cometer violência e crueldade. Se eu não tivesse uma vida tão
privilegiada, eu não sei. Eu acho que poderia facilmente ser terrorista.
Eu odeio pensar no que eu poderia ter sido como mulher se não tivesse
tido a oportunidade de estudar. Eu acho que eu nutriria muito ódio e
ressentimento. E eu acho que o laicismo, na história recente, não tem
sido exatamente pacífico. Na época do Holocausto, havia um campo de
concentração na Alemanha ao lado de um centro de iluminismo racional, no
mesmo bairro de uma grande universidade. As lutas religiosas,
normalmente, são lutas nacionais. Se você ouvir Osama bin Laden falando
sobre por que realizou aqueles atentados terríveis no dia 11 de
setembro, ele disse: “Porque vocês prejudicavam nossa religião.” Mas ele
também tinha motivos políticos. “Vocês interferem na política do
Oriente Médio.” E aí ele se refere a Israel e a Palestina.
Silio Boccanera — O lado político, que acaba sendo esquecido.
Karen Armstrong — A religião e a política se
misturam. O mesmo ocorre com o Hamas. As pessoas sempre falam sobre como
eles são religiosos, mas, na verdade, eles não promovem o islamismo na
Faixa de Gaza. E um movimento altamente nacionalista, e, se nos
concentrarmos apenas na religião ao discutir essa questão,
negligenciando a questão política, não estaremos analisando o panorama
completo, e isso é muito perigoso.
Silio Boccanera — A religião prega esse conceito de que se está desagradando a Deus.
Karen Armstrong — Mais uma vez, isso é uma
declaração vazia, porque nem todas as religiões acreditam em Deus. Esse é
um conceito monoteísta judaico-cristão. E eu concordo, porque, durante
anos, eu odiei Deus. Deus me parecia uma espécie de Grande Irmão que
vivia espionando o que eu fazia, que nunca estava satisfeito com nada do
que eu realizasse. Mas, obviamente, essa é uma concepção de Deus muito
infantil. Eu diria que o Deus bíblico é um kit para iniciantes. Você o
recebe e ouve falar de Deus pela primeira vez, ainda criança, no mesmo
momento em que falam do Papai Noel. Ao longo dos anos, nossa visão do
Papai Noel muda, amadurece e se desenvolve. Mas, no clima atual, a
concepção de Deus continua nesse estado não desenvolvido e infantil.
Pessoas como São Tomás de Aquino, Maimônides ou Ibn Sina, na tradição
muçulmana, ficariam horrorizados com a maneira como os clérigos falam de
Deus. Essa personalidade bíblica do Deus Grande Irmão é uma espécie de
maneira humana de começar a pensar em Deus, mas é um símbolo. Todas as
linguagens religiosas devem observar através do símbolo para ver a
realidade indescritível que está além dele, usando vários tipos de
meditação ou rituais para fazer isso. É algo transcendental. E
transcender significa ir até onde as palavras e pensamentos podem ir.
Silio
Boccanera — A senhora falou de sua experiência na igreja Católica.
Certamente, conhece a igreja por dentro, ou pelo menos um aspecto dela.
Foi escolhido um novo papa, o primeiro oriundo da América Latina, o que é
ótimo. Mas, como nós também sabemos, a Igreja perdeu muito espaço. A
senhora acha que é possível recuperar terreno ou já está tarde demais?
Karen Armstrong — Eu gostaria que o novo papa
saísse à sacada de São Pedro e dissesse duas coisas. Primeiro:
“Desculpe. Nós fizemos muita coisa errada.” Os casos de pedofilia, por
exemplo. “Nós lamentamos muito. Estamos arrependidos e vamos tentar
reparar esse erro, desculpem.” Isso em vez de andar pisando em ovos,
tentando acobertar e salvar a instituição. A segunda coisa que eu
gostaria que esse papa fizesse — estou muito interessada nele e gosto de
saber que ele mora em um apartamento de dois quartos e deixou aquela
coisa toda de palácio para trás — é aparecer naquela sacada e dizer: “Eu
vou voltar para a América Latina.”
Silio Boccanera — A
igreja passou por um grande período de reformas nos anos 1960, com o
Concílio Vaticano II. Acha que está na hora de um Concílio Vaticano III?
Karen Armstrong — Seria ótimo, mas me pergunto
quem participaria dele. Porque havia vários bispos progressistas na
época de João XXIII. Agora, a Assembleia de Cardeais e Bispos tem sido
muito conservadora, foram todos escolhidos a dedo. Os párias da igreja
tendem a ser os liberais. Nos EUA, há católicos que me dizem que, depois
dos escândalos de pedofilia, nunca mais confiariam no clero da mesma
maneira. E como poderiam? Isso é uma base fundamental de uma confiança
sagrada. Agora é hora de os fiéis darem um passo à frente e dizerem:
“Esta também é a nossa igreja.” Eu tenho uma fantasia. Se Jesus voltasse
à Terra, eu adoraria mostrar o Vaticano a ele e deixá-lo ver o que acha
daquilo.
Silio Boccanera — Como no templo.
Karen Armstrong — Exato. Expulsar os
mercadores do templo não seria nada perto do que ele faria. O Vaticano
não representa o que Jesus pregava nem o que São Paulo pregava.
Silio Boccanera — Suas crenças religiosas se tornaram uma crença na vida após a morte, em um ser superior?
Karen Armstrong — Não. Crença é uma dessas
palavras que mudaram de significado. A palavra inglesa para crença
significava “lealdade”, “compromisso”. Ela é a tradução da palavra grega
“pistis”. No Novo Testamento, Jesus pergunta: “Você tem pistis?”
E isso não significa acreditar em algumas doutrinas, significa
“compromisso”. Jesus não pediu que as pessoas acreditassem que ele era a
segunda pessoa da Santíssima Trindade, uma ideia que eu acho que o
deixaria perplexo. Ele perguntou se as pessoas estavam preparadas para
dar o que tinham aos pobres, para viver apenas com o básico, como ele,
para viver como as aves do céu e os lírios dos campos, confiando em
Deus, o Pai, e para trabalhar dia e noite para a construção de um reino
em que ricos e pobres se sentariam juntos. Foi apenas no século XVII que
a palavra “crença” mudou de significado, sendo usada primeiramente por
cientistas e filósofos para denominar a aceitação intelectual de uma
proposição duvidosa. Na época da Reforma, quando todos estavam
discutindo a transubstanciação, a morte dessas “crenças”, a palavra
ganhou um significado que não tinha em outras tradições. O budismo não
tem crenças, trata-se apenas de práticas. O judaísmo não tem crenças e o
alcorão é extremamente duro com relação à teologia, à ortodoxia
teológica, que ele chama de zanna, suposições autoindulgentes
sobre questões das quais ninguém pode ter certeza, mas que tornam as
pessoas irritadiças e burramente sectárias. O conhecimento religioso é
um forma de conhecimento prático. É como nadar ou dirigir. Você tem que
entrar no carro e aprender. Não se aprende a dirigir apenas lendo o
manual do carro. Você precisa entrar e aprender a fazê-lo. Todas essas
“doutrinas”, originalmente, tinham um aspecto prático. Ou um ritual ou
uma prática ética. Se você não seguisse o ritual, não o entenderia. É
como nadar ou dançar. É uma forma prática de conhecimento.
Silio
Boccanera — Isso nos leva ao que a senhora tem promovido recentemente, o
que acham de “vida de compaixão”, seguindo uma regra de ouro. Fale
sobre esse conceitos.
Karen Armstrong — Bem, em 2008, eu ganhei um
prêmio da TED, que promove as TED Talks e a TED Conferences. Eles dão às
pessoas que eles acham que contribuem para um mundo melhor, mas que
poderiam ter um impacto maior com a ajuda deles, um prêmio que significa
o desejo de um mundo melhor. Eu estava farta de ouvir líderes do clero
se reunindo e falando sobre a homossexualidade ou dando ênfase a alguma
doutrina em particular, quando a religião deveria dar uma contribuição
maior a uma das maiores tarefas da nossa época, que é construir uma
comunidade global, na qual pessoas de todas as ideologias e etnias
possam viver juntas em harmonia. Se não conseguirmos isso, não teremos
um mundo viável para a próxima geração. Mas a religião tem sido vista
como parte do problema, por razões óbvias.
Silio Boccanera — E eles não têm compaixão.
Karen Armstrong — Todas essas fés
desenvolveram sua própria versão da “regra de ouro”, que é nunca tratar
os outros como você não gostaria de ser tratado. E esse é o teste de fé.
Não é uma doutrina, uma crença ou uma ética sexual específica. O que se
deve fazer é tratar o outro assim, e essa é uma questão urgente. Se
nós, britânicos, tivéssemos tratados os povos de nossas colônias de
acordo com a regra de ouro, com maior respeito, não teríamos os
problemas políticos que temos hoje.