Em
meados de 2003, circulou pela imprensa espírita um longo e bem
elaborado texto de uma companheira nossa de Doutrina, afirmando
categoricamente, desde o título, que Chico Xavier não é a reencarnação
de Allan Kardec.
Seus
argumentos foram de grande utilidade para que pudéssemos refletir com
maior argúcia sobre tão delicada questão. Entretanto, achamo-nos no
dever de contrapor alguns itens expostos por ela, para servir igualmente
de reflexão ao público estudioso do Espiritismo. Isto vem ao encontro,
inclusive, da sensata observação da autora de que o debate franco e
aberto é indispensável elemento de progresso.
É
preciso que fique claro, antes de mais nada, que nosso objetivo aqui
não é defender uma tese a favor ou contra, mas apenas ir um tanto mais a
fundo na prudência ao pretender dar o veredito final sobre este ou
qualquer outro tema.
Sem
dúvida, muito temos a retificar dentro do Movimento Espírita, pelo
descuido de uma longa série de companheiros da imprensa falada ou
escrita no que se refere à divulgação de opiniões pessoais, sem base nos
critérios racionais fundamentados pelo próprio Codificador.
Escritores
e oradores há com imensa dificuldade em declarar, humildemente, que não
sabem determinado ponto de uma questão mais melindrosa, isto é, que
necessitam de mais tempo de pesquisa e reflexão para informar o que diz a
Doutrina a respeito. Por esse deslize decisivo, arrastam consigo todos
os seus leitores/ouvintes menos estudados, atrasando ainda mais, nestas
almas, a assimilação de uma ciência que, como diz Kardec, exige tempo, e
muito tempo, de estudo.
De
outra forma, tudo seria aliviado se houvesse o aviso prévio de que
certas observações se restringem às suas opiniões pessoais, confirmadas
ou não por apontamentos de terceiros, e de que todo o material deve
servir às reflexões íntimas de cada um – nada além.
Analisemos, então, o que diz nossa companheira:
”Chico ser a reencarnação de Kardec é um absurdo sem fundamento”.
Que
existem aspectos menos prováveis da tese a favor, não há dúvida, mas
precisamos reconhecer que também há não poucos elementos que formam um
quadro coerente de probabilidades. “Absurdo” é uma palavra tão desproporcional que só faz lesar a sensatez demonstrada pela autora.
Não
cabe aqui descrever este quadro de probabilidades – nem haveria espaço –
porquanto o estudioso sério que realmente se interesse pelo tema
encontrará livros, artigos, matérias, entrevistas, enfim, farto material
de pesquisa, tanto a favor quanto contra.
”O estudo dos casos de reencarnação deve ser fruto de pesquisa”.
Certíssimo.
Sabe-se quão difícil é reunir todos os elementos necessários à pesquisa
e comprovação dos casos de reencarnação, seja na coleta de documentos
confiáveis, seja na confirmação de fatores biológicos, psicológicos,
etc., etc. Portanto, nem todos os casos podem ser pesquisados com
segurança.
Mas: o caso Chico-Kardec não passou por esta pesquisa completa. Como, então, podemos assegurar, sem sombra de dúvida,
que não são o mesmo espírito? O critério é um só. Se não há bom-senso
em afirmar, com ares de irrefutabilidade, que Allan Kardec certamente reencarnou como Chico Xavier, também não há em afirmar definitivamente que não.
”Kardec era corajoso, seguro, austero, intelectual; Chico era doce, feminino, amoroso, fraco”.
Não
podemos descrever a personalidade de Kardec como se houvéssemos
convivido pessoalmente com ele ou, mais que isso, como se pudéssemos
vasculhar a intimidade de sua alma sem chance de errar na apreciação de uma série de detalhes.
As
qualidades do grande missionário lionês são, de fato, as apontadas por
ela, indiscutivelmente; entretanto... quem, senão Deus, conhecerá a alma
de cada um em seus momentos de fraqueza? Quem pode ter certeza de que,
em nenhum instante, Kardec tenha sentido alguma espécie de receio
perante as provas? Quem saberá todos os pormenores, os infindáveis
filamentos, os meandros dos caracteres de cada individualidade, tanto na
inteligência, quanto no sentimento? Talvez houvesse nele aspectos
desconhecidos por nós, salientados depois na vivência como Chico Xavier.
E
Chico Xavier pode ter tido inúmeros defeitos (como de fato os teve, por
também estar distante da perfeição dos espíritos puros), menos a fraqueza como um de seus traços principais.
Qualquer
um que estude sua vida perderá o fôlego ao tomar noção da intensidade
de seu trabalho, da largueza de seu desprendimento, da enfibratura de
sua perseverança, da coragem em manter seus posicionamentos, e jamais um
espírito fraco realizaria, do começo ao fim, o que ele realizou.
A
fortaleza de seu espírito atravessou as mais austeras disciplinas
físicas e morais com humildade autêntica, homogênea, ainda que sob o
peso de provações cruéis.
Confundir doçura com fraqueza é o mesmo que tomar a humildade por subserviência ou a dignidade por orgulho, quando não é o caso.
Por outro lado, devido a miserabilidade de nossa evolução moral, temos a tendência a não enxergar a petulância misturada à possível “firmeza” de alguns espíritos, ou a vaidade por baixo do verniz intelectual. Não em Kardec, é notório, mas de uma maneira geral, e principalmente em nós memos.
O campo para a reforma íntima é muito mais vasto do que chegamos a visualizar.
É
possível que Kardec, mais cedo do que tantos de nós, tenha se
conscientizado daquilo que ainda precisava burilar em si mesmo, e tenha
reencarnado como Chico a fim de, ao mesmo tempo, dar prosseguimento à
obra de difusão do Espiritismo e avançar em valores morais mais
profundos e sutis, que até então não houvesse desenvolvido.
Dir-se-á: mas mudou tão rápido, de uma encarnação para outra?
Paulo
de Tarso transformou-se radicalmente numa mesma vida, ainda antes,
portanto, de partir para o intervalo no plano espiritual. Maria de
Magdala (Maria Madalena) soprepujou a própria personalidade enfermiça e
tornou-se outra, deveras melhor, também na mesma encarnação. Muitos
exemplos de personalidades históricas poderiam ser citados, sem falar
das anônimas.
Quem pode demarcar o esforço e a consciência de cada um?
”Chico é um espírito em processo de resgate e regeneração, ainda tendo necessidade do freio curto de Emmanuel”.
Mas
Kardec também não era um espírito em regeneração? Se fosse perfeito, se
nada tivesse a resgatar do passado, não estaria mais encarnado.
Respeito e admiração devemos tanto a Allan Kardec quanto a Chico Xavier,
com o cuidado de não prestar idolatria por nenhum lado, ou a quem quer
que seja.
As
admoestações de Emmanuel, guia espiritual de Chico, serviam como alerta
constante para que o médium conquistasse e mantivesse tantas qualidades
que no passado, talvez como Kardec, deixara escapar.
A
nobre autora ainda cita o fato de Chico ter gritado de medo durante um
voo quando a aeronave ameaçava cair, e que Kardec, numa encarnação
anterior como Jan Huss, morrera cantando na fogueira.
Esqueceu-se
que Chico, ao ser abordado certa vez por um indivíduo armado que
confessou estar ali para matá-lo, olhou-o serenamente e lhe disse: “Meu
filho, Deus é que sabe”, tamanha a confiança que tinha na justiça das
leis divinas.
Em
outro episódio, demonstrou a mesma coragem quando, em visita a uma
penitenciária, ignorou a advertência do diretor, que temia que os presos
o assassinassem. Decidido a praticar a caridade sem se importar com as
circunstâncias, declarou, a respeito de sua própria morte: “Pouco
importa”. E foi em frente.
“O estilo de Kardec era pedagógico, cristalino; o de Chico, literário e poético”.
Não estudamos o suficiente a vasta bibliografia de Francisco Cândido Xavier.
Sem
dúvida, os espíritos exploraram muito sua bagagem literária de outras
vidas, especialmente a poética. A diversidade e precisão admirável de
estilos foi louvada por críticos especializados e bom número de
escritores de renome, não-espíritas.
Contudo,
o médium psicografou não ”apenas” quase todos os gêneros literários
(contos, crônicas, cartas, poesias, dissertações, romances, infantis,
etc.), mas também riquíssimas obras de conteúdo filosófico e científico –
muitas delas de difícil assimilação até mesmo pelos estudiosos mais
preparados, não obstante a clareza argumentativa.
A Série André Luiz,
publicada a partir dos anos 1940, está tão à frente de seu tempo que
precisaremos ainda de muitas décadas para desdobrar todo seu conteúdo.
Nela talvez não identifiquemos exatamente o estilo pedagógico de
Rivail/Kardec, porém é mais do que evidente que ela significa a
progressividade da Doutrina Espírita, prevista pelos Espíritos e pelo
Codificador.
A
mente brilhante do educador francês, seu poder de análise, síntese e
exposição, podem sim ser entrevistos na mente de Chico Xavier, seja na
própria expressão de sua psicografia, seja no equilíbrio e domínio
retórico em suas palestras e entrevistas, seja na fidelidade aos
princípios da própria obra de Kardec.
Além
disso, as diferenças no trabalho de um e de outro não são garantia
absoluta de que eles não sejam encarnações diferentes de um mesmo
espírito.
Vejamos o que dizem os autores espirituais de O Livro dos Espíritos, na resposta à questão 218a:
“Os
conhecimentos adquiridos em cada existência não se perdem. O Espírito,
liberto da matéria, sempre os conserva. Durante a encarnação, pode
esquecê-los em parte, momentaneamente, mas a intuição que conserva deles
o ajuda em seu adiantamento. Sem isso, teria sempre que recomeçar. A
cada nova existência, o Espírito parte de onde estava na existência
anterior.”
Kardec pergunta, na questão seguinte (218b): “Pode, então, haver um grande vínculo entre duas existências sucessivas?”
A resposta: “Nem sempre tão grande quanto podeis supor, porque as posições são frequentemente muito diferentes e, no intervalo delas, o Espírito pode ter progredido.” (grifo nosso)
Analisemos bem esta resposta e vejamos se é, de fato, um “absurdo” o reencarne Kardec-Chico.
Kardec
viveu na Europa; pôde receber educação esmerada desde a mais tenra
idade; frequentou o meio acadêmico; conviveu num cultura menos emotiva e
mais cerebral. Chico renasceu no interior do Brasil; enfrentou trabalho
rústico desde pequeno; não foi além da quarta série do primário;
relacionou-se com um povo fraterno e sentimental. São posições muito diferentes e, em ambos os casos, alguma influência o meio exerceu, já que ninguém está livre disso.
Repito
que não estou defendendo a tese nem a favor nem contra, mas apenas
demonstrando que há mais elementos para serem considerados do que
presumimos.
Observemos
ainda a questão 220. Kardec pergunta: “Ao mudar de corpo, podem-se
perder alguns talentos intelectuais, não mais ter, por exemplo, o gosto
pelas artes?”
Resposta: “Sim, se desonrou esse talento ou se fez dele um mau uso. Uma
capacidade intelectual pode, além do mais, permanecer adormecida numa
existência, porque o Espírito veio para exercitar uma outra que não tem
relação com ela. Então, qualquer talento pode permanecer em estado
latente para ressurgir mais tarde.” (grifo nosso)
A
missão de Allan Kardec foi colocar todo seu tesouro intelectual na
pesquisa e organização da Doutrina Espírita. A missão de Chico Xavier
foi doar por completo seu talento mediúnico ao aprofundamento e à
difusão da Doutrina Espírita.
Kardec
triunfou no bom uso da inteligência, mas talvez não conheceu tudo a
respeito de humildade e amor. Se reencarnou como Chico, entretanto, teve
ocasião de exercê-los mais do que nunca, e também venceu.
Ambos são conhecidos por suas marcas características, mas tanto podem ser dois espíritos distintos, como o mesmo espírito, em fases marcantes diferentes.
”Abandonamos
os critérios de racionalidade e objetividade de Kardec; valorizamos a
linguagem melíflua e piegas de Chico, vendo o Espiritismo mais como
religião”.
Os
critérios de racionalidade e objetividade do Codificador advertem
justamente, no presente caso, que não podemos considerar o nosso
julgamento infalível sem as condições adequadas de pesquisa – e até que
tenhamos estatura evolutiva suficiente para assimilar determinados
dados.
É
verdade que uma ala extensa de adeptos do Espiritismo não se dedica ao
estudo de suas bases fundamentais nem dez por cento do que deveria (e
este é um dos mais sérios problemas do Movimento), preferindo gastar o
precioso tempo somente na leitura de romances ou novidades do nosso
mercado editorial.
Mas
Deus não limitaria o acesso ao conhecimento a apenas um duto. Aos que
ainda não estejam preparados para penetração em textos mais densos,
existem os contos, as poesias, os livros de frases, etc. A luz do
discernimento pode brilhar na alma de cada um a qualquer instante, por
diversos caminhos.
Considerar
“piegas” a linguagem esplêndida, sublime e altamente esclarecedora
(mais do apenas consoladora) das obras de Chico Xavier é uma simples
questão de opinião, de sensibilidade, de degustação, assim como alguns
não leem Allan Kardec por reputá-lo “muito difícil”, não obstante a
clareza impecável de seus textos.
E agora, um aparte.
A
melindrosa discussão sobre o aspecto religioso do Espiritismo não seria
de se prolongar e emaranhar tanto, já que Kardec foi suficientemente
objetivo ao definí-lo no discurso O Espiritismo é Uma Religão?, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em 1º de novembro de 1868 (inserido na Revista Espírita: Jornal de Estudos Psicológicos – Ano XI, 1868, nº 12, dezembro de 1868):
”(...)
Perguntarão: então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida,
senhores. No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos
glorificamos por isto, porque é a doutrina que funda os elos da
fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples
convenção, mas sobre bases mais sólidas: as mesmas leis da natureza.
”Por
que, então, declaramos que o Espiritimo não é uma religião? Porque não
há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e porque, na
opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; desperta
exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o
Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí senão uma
nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em
matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de
cerimônias e de privilégios; não o separaria das ideias de misticismo e
dos abusos contra os quais tantas vezes se levantou a opinião pública.
”Não
tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção
usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre
cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis porque simplesmente
se diz: doutrina filosófica e moral.” (recomendamos a leitura integral)
Saber
se Chico Xavier foi ou não a reencarnação de Allan Kardec é preocupação
secundária. O fundamental é absorver o magnífico exemplo de conduta de
Chico e a riqueza essencial de suas obras; o cristalino modelo de
bom-senso de Kardec e a unidade formidável de suas obras.
Não
podemos, todavia, desprezar este assunto ou outros que possam colaborar
para o exercício de nosso raciocínio em busca da verdade. Isto é
importante perceber. Com alegria e disciplina, dedicamo-nos ao estudo do
Espiritismo para o desenvolvimento de nossa inteligência como
individualidades espirituais e para, com isso, podermos servir melhor os nossos semelhantes.
O
problema surge quando nos escapa a noção de equilíbrio. Se não tomamos
cuidado, desperdiçamos tempo com questiúnculas polêmicas, empedramos o
nosso coração e atrofiamos o amor caritativo, ainda nascente em nossas
almas pouco evolvidas.
Por
esta razão, não devemos nunca perder a admiração, sem fanatismo, por
Allan Kardec, já que precisamos muito, mas muito ainda atentar para seu
legado.
Igualmente,
não devemos jamais perder a admiração, sem idolatria, por Chico Xavier,
já que estamos muito, mas muito longe de agir com sua grandeza.
Fernando
Peron, de São Paulo (SP), é ator e dublador; pesquisador e estudioso do
Espiritismo; produtor e apresentador do programa Ponte Para a Luz (interpretação de mensagens de Chico Xavier) na Rádio Boa Nova AM 1450 Khz.
Também publicado no livro Chico Xavier, a Reencarnação de Allan Kardec - Carlos A. Baccelli - LEEPP – Livraria Espírita Edições Pedro e Paulo