Kardec, Chico, Guimarães de Andrade |
João Xavier de Almeida - Ex-presidente da Federação Espírita Portuguesa Reflexões inspiradíssimas do querido amigo João Xavier, o melhor e E-Terno Presidente da FEP. Um dos Espíritas mais Espiritualizados que tenho o prazer de conhecer e sempre aprender - emanuno Não tenho a presunção de decidir a polémica de Chico Xavier ter sido, ou não, Kardec reencarnado. Opinar desapaixonadamente sobre ela, num sentido ou no oposto, sem exacerbar atitudes, parece-me lícito. Há posições a favor e contra para cada uma das teses, ambas plausíveis em teoria. A controvérsia alastrou à Internet, destacando-se uma análise de Dora Incontri, prestigiosa autora espírita, muito conhecida na área de educação e pedagogia. Não se lhe discute o inegável direito à posição tomada, mas merece reparos a argumentação em que Dora se fundamentou. A prezada confreira estabelece uma abissal diferença entre aquelas duas personalidades, ao expor suposta incoerência delas entre si e assim rejeitar, como absurda, a hipótese de pertencerem a uma só e mesma entidade. Com propriedade, refere a índole activa, corajosa, resoluta, de Allan Kardec, a sua racionalidade e objectividade de expressão, o seu rigor científico. Procurando fazer o contraste desse retrato, Dora cai no erro aparatoso de ver em Francisco Cândido Xavier uma personalidade fraca, pusilânime, passiva, de atitudes auto-depreciativas e expressões sobre si mesmo como pulga, cisco, insecto e semelhantes. Rotula tudo isso como “humildade mística”, “linguagem piegas”, transparecendo das suas referências ao saudoso médium alguma altivez, quase acrimónia. Tal modo de ver não dá sustentação lógica nenhuma à tese de Dora e fragiliza-a irremediavelmente. Humildade autêntica, podendo aparentar fraqueza, provém sempre duma força imensa, muita grandeza interior. Era típica do bem-humorado Chico e ele sabia rir de si próprio, virtude rara. Deturpá-la e tomá-la por fraqueza, mostra-se tão incongruente como ver uma confissão de incultura e ignorância na profunda frase do Sábio grego: “…Só sei que nada sei”. E quem tomaria Jesus por piegas, quando exortou à mansidão, à humildade? Ou por fraco e incapaz, ao declarar: “Por mim nada posso fazer… não busco a minha vontade mas a d’Aquele que me enviou” (João 5.30)? Em suma: a espiritualidade primorosa do bondoso médium, a sua espontânea afabilidade e doçura de trato, indícios dum elevado patamar evolutivo, nada se confundem com pequenez e frouxidão de carácter. Nas muitas narrativas publicadas sobre Chico, não faltam atitudes suas de determinação, firmeza, carácter muito nobre. E sem sombra de agressividade ou sequer animosidade. Em conhecido episódio dos anos 80, um alto magistrado federal, calculando talvez capitalizar politicamente a enorme popularidade de Chico, desejou visitá-lo em sua casa. Previamente, ali compareceram assessores para estudarem as condições locais, e iam anotando preparativos: algumas cadeiras aqui, uns adornos ali, um arranjo acolá… quando Chico interveio, delicado como sempre, mas firme e inapelável: Amigos, Sua Excelência vem visitar a casa dum pobre, não há protocolo nem enfeites. E conhecem-se casos de visita a prisões, em que Chico recusava protecção armada, para (explicava) passar aos reclusos uma mensagem de fé e consolo, não de temor e desconfiança. A expressão de Dora, “humildade mística”, em verdade podia ser elogiosa. Não o é no contexto nem na óbvia intenção da autora, que confunde o fenómeno místico, área da teologia-ciência (Pietro Ubaldi exalta-o como sublimação da ética, e nobre função da nossa biologia superior); Dora confunde-o com algo bem diferente, conotado com “teologia” dogmática, algo que em tom pejorativo designamos impropriamente misticismo ou, coloquialmente, beatice. O grande filósofo e educador brasileiro Huberto Rohden (1894-1981) conviveu com Albert Einstein na Universidade de Princeton, durante os anos de 1945 e 1946. O ensejo facultou-lhe dados que o levaram a publicar um dos seus livros mais procurados: “Einstein: o Enigma do Universo” (ed. Martin Claret, São Paulo), no qual, cingido ao pensar do seu genial biografado, estabelece uma relação de “identidade essencial entre Matemática e Mística”. Rohden cita a repetida afirmação einsteiniana de que “as leis fundamentais do Cosmos não são descobertas por análise, mas por intuição”. O notável catedrático de São Paulo e de Washington pondera nesse livro: “O que Einstein diz da matemática pode ser aplicado à mística, porque tanto esta como aquela são uma captação cósmica, e não uma construção mental”. E vai citando o génio de Princeton: ”O mecanismo do descobrimento não é lógico e intelectual; é uma iluminação súbita, quase um êxtase. Em seguida, é certo, a inteligência analisa e a experimentação confirma a intuição”. Apesar da escassa formação escolar de Chico, o quantum místico da sua alta espiritualidade (afinizado ao dos co-autores espirituais) insufla mais teor didáctico, educativo e consolador às suas páginas, ou aos muitos episódios da sua proverbial humildade, do que, sem aquele quantum, a erudição da nossa laureadíssima Dora imprime ao seu discurso académico. Este (aliás meritório, pelo que dele conheço, digno do nosso orgulho fraterno, de confrades espíritas da autora) só teria a ganhar em potencial pedagógico e construtivo, se incorporasse menos tique cientificista e mais toque do Evangelho de Jesus. O aprofundamento deste por cientistas (como o geneticista Francis Collins, o terapeuta espiritual Eckhart Tolle… ou, ontem, Espinosa, genial precursor do monismo, grosseiramente anatematizado como panteísta) surpreende-os com focos de conhecimento informal que lhes iluminam a ciência formal e frequentemente lhes incutem uma religiosidade apurada, sem professarem nenhuma religião instituída. Valorizar o irrecusável aspecto científico da doutrina espírita, não implica desvalorizar-lhe os não menos irrecusáveis aspectos filosófico e religioso. Os três, solidários, robustecem-se e disciplinam-se mutuamente de forma que nenhum deles desequilibre o conjunto, seja por atrofia seja por hipertrofia. (Porque muito as respeito, perdoem-me as sensibilidades espíritas desafectas ao termo “religioso”, aplicado à doutrina que nos une; a qual, Deus nos livre de convertermos em pomo de desunião). Mas afinal, Chico Xavier será mesmo Kardec? Não será? Claro que um dia o saberemos em definitivo, com certeza e serenidade. Isso não resultará do debate de opiniões, nem de uma douta elaboração lógica, analítica, mecanicista, racionalista, cartesiana… (sem dúvida, imprescindível e eficaz na sua esfera de aplicação). Surgirá, sim, como fruto daquela outra “ciência” que uma vez, há dois mil anos, iluminou um modesto pescador acerca de uma questão semelhante, o que Jesus saudou em termos que nos nossos dias poderiam ser: “Feliz de ti, Simão Pedro, porque não foi a cerebração que to revelou, mas sim a luz mística do Reino do Pai” (ver Mateus 16.17). Rohden, filólogo emérito, realça o contraste do que designa “ex-tuição”, o processo cognitivo lógico-analítico, com “in-tuição”: fulgor instantâneo do Eu real e profundo, divino (o inconsciente dos psicólogos), em direcção ao Ego cerebral, periférico, amadurecido para uma dada revelação. “Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”, cita ainda, do milenar Bhagavad Gita. No seu referido livro, Rohden menciona casos históricos de iluminação intuitiva que, em muitas áreas do saber, alargaram horizontes à Humanidade: Hermes Trimegisto, Moisés, os grandes neoplatónicos de Alexandria, Agostinho, Tertuliano. Mas também contemporâneos nossos: o psiquiatra Viktor Frankl, director da Policlínica Neurológica da Universidade de Viena, e a sua bem sucedida “Logoterapia”; o místico Joel S. Goldsmith, ex-profissional de vendas, e suas curas admiráveis (“Arte da Cura pelo Espírito”, ed. O Pensamento). Neste ponto, recordo um nome familiar aos espíritas: Hernâni Guimarães Andrade. Em minha irrelevante opinião, o ilustre matemático agiu “in-tuído” superiormente, ao elaborar a sua “Teoria Corpuscular do Espírito”, cujo primeiro volume indica em subtítulo: “Uma Extensão dos Conceitos Quânticos e Atómicos à Ideia do Espírito”. A obra, reeditada pela Didier (Votuporanga, SP), permanece um convite e um desafio à curiosidade científica de entendidos, espíritas ou não. É certo que ela foi contestada fortemente em meios espíritas, há umas três décadas. Mas a meu ver, apesar do seu brilho intelectual essa contestação não refutou a proposta científica de Andrade. Não a testou na estrutura essencial, limitando-se a arguir a tese sob o paradigma lógico de “ex-tuição”, mecanicista, cerebral, racionalista; a arguir uma tese cuja inspiração paira acima do raio de acção eficaz desse paradigma - o qual poderá testar a proposta de Andrade, sim, mas jamais lograria construi-la. Claro, tal paradigma continua soberano dentro da sua jurisdição, muito vasta; porém não total e absoluta: ele próprio vai amadurecendo aberturas para o rasgo místico (no bom sentido!) que o transcende, mas o enriquecerá. A ampla erudição dum Blaise Pascal (físico, matemático, filósofo, teólogo - domínios da “ex-tuição”) terá favorecido a eclosão do seu rasgo intuitivo lapidar: “O coração tem razões que a razão desconhece”. Em versão livre do luminoso conceito, podemos dizer com Einstein e Rohden: da dimensão mística da Criação, captamos revelações-soluções (matemáticas, filosóficas, técnicas, artísticas, terapêuticas…) que não alcançaríamos com a nossa mera racionalidade cerebral, mecanicista. E concluindo, com Allan Kardec: nem o Homem é apenas cérebro, nem o Universo apenas matéria. João Xavier de Almeida - ex-presidente da Federação Espírita Portuguesa (FEP) Artigo no Jornal de Espiritismo da Associação de Divulgadores Espiritismo em Portugal (ADEP) http://www.adeportugal.org/jornal/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=209 [grifos nossos] Artigo no Jornal de Espiritismo da Associação de Divulgadores Espiritismo em Portugal |