Por Eduardo Lovatto Burin
Era a época das flores em Paris, no ano de 1853, propiciando aos transeuntes da “Cidade da Luzes” uma atmosfera mais agradável. Tomando as ruas estreitas e insalubres, "messieurs et mesdames" parisienses, em seus trajes típicos do fim da época vitoriana, e, naturalmente também, grande número de cidadãos empobrecidos, em suas vestimentas simples, consequência de décadas de convulsões político-sociais, veriam, a partir daquele ano, uma transformação radical na sua estrutura urbana. O sobrinho de Napoleão Bonaparte e novo imperador da França após a Revolução de 1848, Napoleão III, confia ao prefeito do Sena, Georges-Eugène Haussmann, o planejamento de uma nova cidade. Essa reestruturação transformaria Paris, em uma década, na cidade mais imponente da Europa, com seus suntuosos prédios públicos, “et les grands boulevards’’, que perduram e configuram a Paris dos dias atuais. Mas outra transformação iniciava-se, e esta infinitamente mais ampla, importante, ruidosa e definitivamente não planejada pelo “Barão Haussmann”.
No sábado do dia 21 de maio, o jornal crítico e satírico da sociedade francesa, o “Le Journal Pour Rire’’, fundado em 1848, publicava em sua capa o título "Les tables et les têtes tournantes”, com ilustrações do jovem e brilhante ilustrador francês Gustave Doré, com apenas 21 anos de idade. O título do artigo, “As mesas e as cabeças girantes’’, fazia referência a um fenômeno que se tornava habitual nas reuniões sociais “des salons de Paris” e de residências particulares, onde, sentados em torno de uma mesa, os participantes colocavam as mãos sobre ela e esperavam que se movimentasse e respondesse à curiosidade, às vezes, pueril e impertinente de muitos. O estudo do médico alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815), era amplamente conhecido e divulgado, pelos chamados “magnetizadores’’, inclusive, com a Sociedade dos Magnetizadores Espiritualistas estabelecida em 1850, que explicavam os fenômenos das mesas que pulavam, batiam e giravam pela ação do “magnetismo animal”. As divertidas ilustrações faziam referência sobre o “inconveniente de jantar sobre uma mesa muito fácil de magnetizar” e outra sobre “medidas de segurança acorrentando a mesa, em cafés e restaurantes, para que esta não deixasse o lugar”. Interessante é que o redator e fundador do jornal, Monsier Charles Philipon, afirmava que não somente as mesas giravam, mas as cabeças também!
As mesas não giravam somente pela magnetização dos corpos, senão pela “invasão organizada” do mundo invisível dos espíritos, que, segundo Sir. Arthur Conan Doyle, já acontecia desde Emmanuel Swedenborg (1688-1772) e posteriormente nos fenômenos de Hydesville nos Estados Unidos, em 1848, com as irmãs Fox. Agora, “eles” batiam com mais força às portas da França, trazendo o prelúdio da Terceira Revelação. Mas para chamar atenção do discípulo amado do Cristo e codificador do Espiritismo os enviados da Providência ainda fariam as mesas girarem por mais 2 anos. Assim, as mesas e as “cabeças” continuavam a girar.
No fim do ano de 1853, uma jovem francesinha de doze anos era levada pelo pai após algumas “crises nervosas” a Versailles para uma visita a um médico amigo da família, o Dr. Maldigny. Tratava-se de Mlle. Ermance Dufaux De La Jonchére e ao contato com o médico o diagnóstico estava determinado: mediunidade. De lápis em punho, recebe as primeiras mensagens de São Luis, ou, Rei Luis IX de França, publicando o livro no ano seguinte com o título “Vida de Luis IX, escrita por ele mesmo”. A censura impediria a circulação do livro, mas a família Dufaux teria contato com Kardec, segundo Dr. Silvino Canuto de Abreu, na noite do lançamento de "O Livro dos Espíritos”, em 18 de abril de 1857, na residência dos Rivail. Já São Luis se tornaria o presidente espiritual da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.
A Espiritualidade se fazia mais presente que nunca e em 1854 o Professor Rivail ouve falar sobre as tais mesas girantes pelo amigo Sr. Fortier. Mas somente no começo de 1855 o amigo de mais de vinte e cinco anos Sr. Carlotti o convence a acompanhar o fenômeno. Ao tomar contato com o trabalho da Codificação, Allan Kardec coordena uma multidão de encarnados e desencarnados que haviam assumido o compromisso com o Cristo e com o codificador escolhido de auxilia-lo na difusão da Doutrina Espírita. Mas além do trabalho hercúleo das publicações, e toda a responsabilidade com a Doutrina, o professor era sobrecarregado de preocupações para contolar os colaboradores do movimento, e o que poderia ocorrer após seu decesso. As mesas haviam se acalmado, mas assim que Kardec deixa o corpo as “cabeças girantes” do movimento espírita voltam a girar. E com força total.
O sincretismo religioso, filosófico e obtuso toma a frente do movimento, que gradativamente perde força e enxovalha o trabalho dos espíritos e de Kardec. Apesar da luta incessante de sua esposa, companheira e trabalhadora ativa da Codificação, Amélie-Gabrielle Boudet , sua amiga Berthe Fropo, François-Marie Gabriel Delanne, Léon Denis e outros tantos que lutaram pelo nome da doutrina e de Kardec, o personalismo das “cabeças girantes” e suas ideias e intenções comprometedoras enterraram o Espiritismo na França.
O Espiritismo é transladado para o Brasil e Kardec vem logo após, como anunciado em "Obras póstumas". Na noite memorável de 8 de julho de 1927, em Pedro Leopoldo, aos 17 anos, o espírito de Allan Kardec, agora na personalidade de Chico Xavier, inicia o trabalho da complementação da Codificação: dezessete folhas preenchidas sobre os deveres do espírita-cristão.
Chico vivenciou o Cristianismo como poucos, exerceu sua mediunidade com responsabilidade e comprometimento, e ainda que não deixasse transparecer, pela sua humildade e bom senso, tomou o leme do movimento, como lhe era e é de direito. Os espíritos franceses, que haviam encarnado na França com Kardec, também retornaram, e com eles as “cabeças girantes”. Durante os 75 anos de mediunidade, ele manteve o rumo certo e conduziu com sabedoria as controvérsias e desvios que alguns confrades do movimento espírita insistiam em repetir. Porém, entre percalços e privações, completou o trabalho iniciado na França e definiu o modelo de conduta do espírita-cristão.
No dia 30 de junho de 2002, Chico Xavier retornou à pátria espiritual e assim, novamente, estaríamos em teste para provar a fidelidade aos princípios estabelecidos por Kardec. Surpresa ou não, eis que o movimento começa a tomar caminhos semelhantes aos enfrentados pelos parcos defensores do mestre de Lyon. Egos inflados, conteúdos pagos, esquecimento das obras de Chico, personalismo crescente, postulados não estabelecidos na Codificação ou por Chico Xavier... Eis que a história se repete e não estamos prestando, ou dando, a devida atenção ao futuro do Espiritismo.
Talvez se o “Le Journal Pour Rire” ainda existisse, Gustave Doré não ilustraria, como fez na primavera de 1853, “L’Universe vu à vol d’oiseau”, ou “ O universo visto pelo voo de um pássaro”, mostrando uma mesa com seis pessoas sentadas com as mãos sobre a mesa girante, mas possivelmente Philipon escreveria como título de maio de 2018, 165 anos após: “Les tables ont cessé de tourner, mais les têtes tournent toujours” - “As mesas pararam de girar, mas as cabeças continuam girantes”!!!