Embora o Brasil ainda carregue o status de maior país católico do
mundo, e apesar da prosperidade das igrejas "evangélicas", sucesso de
bilheteria mesmo é o espiritismo, para dissabor dos líderes das duas
tendências majoritárias. Nicho seguro nas novelas de TV e nas editoras
de livros populares, o veio só há pouco foi descoberto pelo cinema.
Começou com o êxito de um filme muito modesto, "Bezerra de Menezes", e
logo chegou à inevitável biografia do médium Chico Xavier (1910-2002),
figura imensamente popular, carismática e fenômeno "midiático"
(autodefinido no filme como um carteiro que recebe e entrega mensagens).
Um dos achados da produção dirigida por Daniel Filho é tomar como eixo
do roteiro exatamente uma aparição (trocadilho intencional) de Chico
Xavier num programa de entrevistas ao vivo da TV Tupi nos anos 60. O
diretor de imagens (Tony Ramos), enquanto tenta organizá-las como acha
melhor, percebe que sua mulher (Christiane Torloni) está na plateia. O
casal perdeu um filho e não se conforma. Ela busca conforto no médium e
procura convencer o marido a fazer o mesmo, mas ele se recusa por não
acreditar. A entrevista de Chico será o contraponto tanto dos
flashbacks que contam sua vida quanto do conflito do casal.
A estrutura engenhosa do roteiro de Marcos Bernstein permite vários
cruzamentos de sentidos interessantes, além de dar aos dois atores que
fazem o personagem adulto (Ângelo Antônio e Nelson Xavier) a
possibilidade de construí-lo com uma laconicidade rara no estilo de
interpretação vigente. Mas não evita o problema habitual das
cinebiografias: dar conta de vários episódios que tendem a se empilhar
sem muito critério.
O problema é agravado pelas limitações de Daniel Filho como diretor.
Várias passagens e personagens obscuros se inserem apressadamente na
narrativa, que em boa parte não tenta nada além do que localizar o
espectador no espaço para poder ir em frente. A opacidade se adensa lá
pelo meio do filme, a ponto de a história se arrastar e perder
interesse, e é justamente o trecho em que o personagem mais enfrenta
conflitos (com a família, com a cidade, com o padre local).
O programa da TV Tupi (chamado "Pinga-Fogo") que o filme reproduz (e
depois mostra) é encenado ao estilo tribunal de inquisição. Era esse
papel de réu que a imprensa costumava dispensar a Chico Xavier: um
emissário divino ou uma fraude? O filme apenas parece embarcar nessa
discussão, insistindo em supostas contradições no comportamento do
personagem: se transita nas esferas além da morte, por que teme morrer?
Se tem o dom da cura, por que não salvou o próprio irmão e procura
médicos "terrenos" quando fica doente? Se tem acesso aos mortos, por
que as cartas que transcreve ("psicografa") parecem seguir um padrão
genérico de texto?
Tanto Daniel Filho quanto o personagem (o de Tony Ramos) que, na
história, atesta veracidade final ao trabalho do médium se dizem ateus,
o que parece ser oferecido como um atestado de isenção. Mas
imparcialidade em ficção é um contrassenso. O filme é tão crente que
materializa os espíritos-guias de Chico: primeiro sua mãe (Letícia
Sabatella), depois Emmanuel (André Dias), que o "acompanhou" durante
toda a vida e seria o dono da voz que lhe ditava os livros póstumos de
escritores conhecidos. Além disso, a câmera chama o espectador a adotar
o ponto de vista não de Chico, mas dos próprios espíritos, quando,
repetidamente, chega do alto, imitando um voo de pássaro, e "baixa" no
personagem (na primeira das vezes entrando por seu ouvido).
"Chico Xavier" abre com um colírio pingando de um contagotas (o médium
sofria cronicamente da vista) e segue com as falas do personagem na
televisão sendo submergidas por outros sons (além disso, por
imperfeição técnica, não dá para entender muitos dos diálogos).
Desconfie de seus sentidos. É o que o filme nos diz, e até que diz bem.