Com efeitos especiais de ponta e trilha sonora assinada por Philip Glass, Nosso lar investe alto na adaptação de um dos livros mais conhecidos de Chico Xavier
Tiago Faria
As imagens poderiam ter saído de uma obra de ficção científica. Na tela, os personagens repousam em camas flutuantes, movimentam-se em ônibus voadores e habitam uma cidade futurista e azulada, invisível aos olhos da ciência. Mas, apesar de transportar o espectador a um ambiente transcendental, Nosso lar deve provocar uma dúvida ao fim da sessão: sonho ou realidade? “O livro se tornou uma referência muito importante para quem quer saber algo sobre o mundo espiritual. Mas sei que uma parte do público vai interpretá-lo como uma obra de fantasia. O mais complexo foi fazer um filme plural, ecumênico, sobre a condição humana”, resume Wagner de Assis, diretor, roteirista e coprodutor do longa-metragem.
A confusão será inevitável.
Vencer o estigma de “produto religioso” é um dos maiores desafios da superprodução que estreia amanhã em cerca de 400 salas do país. O outro é fazer justiça a um dos livros espíritas mais conhecidos do país. Escrito por Chico Xavier em 1944, a obra narra a experiência pós-morte do médico André Luiz na colônia chamada Nosso Lar. Para os espíritas, o carioca “ditou” o testemunho ao médium. Desde a primeira edição (são 60, no total), vendeu 2 milhões de exemplares no Brasil e se tornou leitura de referência para quem crê na doutrina.
“Acima de tudo, é boa literatura, e foi consagrado porque tem uma história poderosa”, observa Wagner, que escreveu fitas infantis (como Xuxa e os duendes) e dirigiu apenas um outro longa (A cartomante, de 2004, codirigido por Pablo Uranga). A força das palavras instigou o cineasta — que se define como um “espírita cristão” — a cometer uma ousadia: sugeriu a adaptação cinematográfica à Federação Espírita Brasileira, que detém os direitos do livro. “Li e estudei o livro diversas vezes. Mas me perguntei: seria possível fazer um filme sobre ele?”, afirma. Para se manter fiel ao ambiente descrito por André Luiz, o diretor saiu literalmente numa aventura: construiu uma cidade.
“Já sabíamos que seria um filme grande. Mas ninguém imaginava que teria esse tamanho todo”, admite a produtora Iafa Britz, que colaborou em comédias como Divã e Se eu fosse você.
O orçamento de Nosso lar, coproduzido pela Globo Filmes e distribuído pela Fox Film, bate a casa dos R$ 20 milhões, uma fortuna até então inviável para filmes nacionais. O longa mais caro até então era Lula, o filho do Brasil, bancado a R$ 16 milhões. E o lançamento quebra outros tabus, principalmente no que diz respeito ao uso de efeitos especiais. No caso, cerca de 300 imagens foram retocadas digitalmente. A empresa canadense Intelligent Creatures, de Watchmen e Fonte da vida, desenvolveu o visual. A direção de fotografia ficou a cargo do suíço Ueli Steiger, de O dia depois de amanhã e Godzilla. E a trilha foi assinada pelo americano Philip Glass, de As horas e Kundun.
Hollywood é aqui
O padrão do longa tem um quê hollywoodiano, mas com limitações à brasileira. “Descobri que a imaginação tem limite sim: é o dinheiro. Para eles (os americanos), fazer um filme como o nosso com R$ 20 milhões é um milagre. Eles gastam 200, 300 milhões de dólares”, compara o diretor. Ninguém ainda se arrisca a prever números de espectadores. Há esperanças, porém, de que o filme desperte o interesse dos 3,4 milhões que assistiram a Chico Xavier, o maior sucesso do ano no país. “Foi uma coincidência incrível, estamos até chocados com isso. É claro que um filme ajuda o outro. Quem viu Chico Xavier entende o contexto de Nosso lar”, comenta Iafa.
Ainda assim, as diferenças entre os filmes são marcantes. Chico Xavier adotava o tom realista de uma cinebiografia. Nosso lar, por sua vez, mergulha no cotidiano de uma “colônia espiritual” — que flutua a 50km do Rio de Janeiro. André Luiz (interpretado por Renato Prieto, conhecido ator de peças de temática espírita) vaga por um ambiente que combina tecnologia de ponta com intenções nobres. A jornada espiritual do personagem norteia a narrativa, que ensina vários aspectos do espiritismo. “Não queríamos um filme que doutrinasse o público. Mas tivemos a preocupação de fazer com que as pessoas conhecessem as leis daquele lugar. Quando você vê Avatar, descobre as leis de Avatar. A cidade espiritual também tem leis que regem aquele mundo”, orienta.
Apesar de falar na superprodução de James Cameron, Wagner faz questão de ressaltar que as principais inspirações de Nosso lar não vêm do cinema de fantasia, mas de dramas “paranormais” como O sexto sentido, Ghost — Do outro lado da vida e Amor além da vida. “Não existe uma onda de filmes espíritas no Brasil. Noto é que o cinema voltou a tratar desse tema, talvez de uma forma diferente. Nosso lar é um filme sobre medo, saudade, sofrimento, perdão. Quando ganham aspectos sociológicos, esses temas são absorvidos. Mas, quando têm traços religiosos, são rejeitados por algumas pessoas. Minha grande tarefa foi mostrar que os temas do filme fazem parte da vida”, afirma. Muito além da ficção, portanto.
INSPIRAÇÃO BRASILIENSE
Para o público de Brasília, Nosso lar deve provocar sensação de familiaridade. Não à toa. Para construir uma “cidade de outra dimensão”, a diretora de arte Lia Renha usou como ponto de partida as criações de Oscar Niemeyer. A ideia era associar a fluidez do figurino — todo branco, sem ostentação — ao traçado urbano. Daí as semelhanças entre a arquitetura do filme com o projeto da capital. Em uma cena, aparece um prédio com cobogós. Os ministérios também guardam semelhanças com as obras da Esplanada.
NOSSO LAR
(Brasil, 2010, drama, 104min, não recomendado para menores de 10 anos). De Wagner de Assis. Com Renato Prieto, Fernando Alves Pinto, Rosane Mulholland e Othon Bastos. Estreia amanhã. Confira salas e horários no caderno Divirta-se.
R$ 20 milhões
Valor da produção do longa
400
Número de salas que vão exibir o filme
300
Número de imagens que foram retocadas digitalmente
1.000
Quantidade de pessoas que trabalharam no set de filmagens