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Notícia

A ordem do Mestre — Humberto de Campos


Avizinhando-se o Natal, havia também no céu um rebuliço de alegrias suaves. Os anjos acendiam estrelas nos cômoros de neblinas douradas e vibravam no ar as harmonias misteriosas que encheram um dia de encantadora suavidade a noite de Belém. Os pastores do Paraíso cantavam e enquanto as harpas divinas tangiam suas cordas sob o esforço caricioso dos zéfiros da imensidade o Senhor chamou o discípulo bem-amado ao seu trono de jasmins matizados de estrelas.

O vidente de Patmos não trazia o estigma da decrepitude como nos seus últimos dias entre as espórades. Na sua fisionomia pairava aquela mesma candura adolescente que o caracterizava no princípio do seu apostolado.

- João, – disse-lhe o Mestre – lembras-te do meu aparecimento na Terra?

- Recordo-me, Senhor. Foi no ano 749 da era romana, apesar da arbitrariedade de frei Dionísios, que colocou erradamente o vosso natalício em 754, (...).

- Não, meu João, – retornou docemente o Senhor – não é a questão cronológica que me interessa em te arguindo sobre o passado. É que nessas suaves comemorações vem até mim o murmúrio doce das lembranças!...

- Ah! Sim, Mestre amado, – retrucou pressuroso o discípulo – compreendo-vos. Falais da significação moral do acontecimento. Oh!...se me lembro... a manjedoira, a estrela guiando os poderosos ao estábulo humilde, os cânticos harmoniosos dos pastores, a alegria ressoante dos inocentes, afigurando-se-nos que os animais vos compreendiam mais que os homens, aos quais ofertáveis a lição da humildade com o tesouro da fé e da esperança. Naquela noite divina, todas as potências angélicas do Paraíso se inclinaram sobre a Terra cheia de gemidos e de amargura para exaltar a mansidão e a piedade do Cordeiro. Uma promessa de paz desabrochava para todas as coisas com o vosso aparecimento sobre o mundo. Estabelecera-se um noivado meigo entre a Terra e o Céu, e recordo-me do júbilo com que vossa Mãe vos recebeu nos seus braços feitos de amor e de misericórdia. Dir-se-ia, Mestre, que as estrelas de ouro do Paraíso fabricaram, naquela noite de aromas e de radiosidades indefiníveis, um mel divino no coração piedoso de Maria!... Retrocedendo no tempo, meu Senhor bem-amado, vejo o transcurso da vossa infância, sentindo o martírio de que fostes objeto; o extermínio das crianças de vossa idade, a fuga nos braços carinhosos da vossa progenitora, os trabalhos manuais em companhia de José, as vossas visões maravilhosas no Infinito, em comunhão constante com o vosso e nosso Pai, preparando-vos para o desempenho da missão única que vos fez abandonar por alguns momentos os palácios de sol da mansão celestial para descer sobre as lamas da Terra.

- Sim, meu João, e por falar nos meus deveres como seguem no mundo as coisas atinentes à minha doutrina?

- Vão mal, meu Senhor. Desde o concílio ecumênico de Niceia, efetuado para combater o cisma de Ario em 325, as vossas verdades são deturpadas. Ao arianismo seguiu-se o movimento dos iconoclastas em 787 e tanto contrariaram os homens o vosso ensinamento de pureza e de simplicidade que eles próprios nunca mais se entenderam na interpretação dos textos evangélicos.

- Mas não te recordas, João, que a minha doutrina era sempre acessível a todos os entendimentos? Deixei aos homens a lição do caminho, da verdade e da vida, sem lhes haver escrito uma só palavra.

- Tudo isso é verdade, Senhor, mas logo que regressastes aos vossos impérios resplandecentes reconhecemos a necessidade de legar à posteridade os vossos ensinamentos. Os evangelhos constituem a vossa biografia na Terra; contudo, os homens não dispensam, em suas atividades, o véu da matéria e do símbolo. A todas as coisas puras da espiritualidade adicionam a extravagância de suas concepções. Nem nós e nem os evangelhos poderíamos escapar. Em diversas basílicas de Rávena e de Roma, Mateus é representado por um jovem, Marcos por um leão, Lucas por um touro e eu, Senhor, estou ali sob o símbolo estranho de uma águia.

- E os meus representante, João, que fazem eles?

- Mestre, envergonho-me de o dizer. Andam quase todos mergulhados nos interesses da vida material. Em sua maioria, aproveitam-se das oportunidades para explorar o vosso nome e quando se voltam para o campo religioso é quase que apenas para se condenarem uns aos outros, esquecendo-se de que lhes ensinastes a se amarem como irmãos.

- As discussões e os símbolos, meu querido, – disse-lhe suavemente o Mestre – não me impressionam tanto. Tiveste, como eu, necessidade destes últimos para as predicações e sobre a luta das ideias não te lembras quanta autoridade fui obrigado a despender, mesmo depois da minha volta da Terra, para que Pedro e Paulo não se tornassem inimigos? Se entre meus apóstolos prevaleciam semelhantes desuniões, como poderíamos eliminá-las do ambiente dos homens, que não me viram, sempre inquietos nas suas indagações?  O que me contrista é o apego dos meus missionários aos prazeres fugitivos do mundo!

- É verdade, Senhor.

- Qual o núcleo de minha doutrina que detém no momento maior força de expressão?

- É o departamento dos bispos romanos, que se recolheram dentro de uma organização admirável pela sua disciplina, mas altamente perniciosa pelos seus desvios da verdade. O Vaticano, Senhor, que não conheceis, é um amontoado suntuoso das riquezas das traças e dos vermes da Terra. Dos seus palácios confortáveis e maravilhosos irradia-se todo um movimento de escravização das consciências. Enquanto vós não tínheis uma pedra onde repousar a cabeça dolorida, os vossos representantes dormem a sua sesta sobre almofadas de veludo e de ouro; enquanto trazíeis os vossos pés macerados nas pedras do caminho escabroso, quem se inculca como vosso embaixador traz a vossa imagem nas sandálias matizadas de pérolas e de brilhantes. E junto de semelhantes superfluidades e absurdos surpreendemos os pobres chorando de cansaço e de fome ao lado do luxo nababesco das basílicas suntuosas, erigidas no mundo como um insulto à glória da vossa humildade e do vosso amor; choram as crianças desamparadas, os mesmos pequeninos a quem estendíeis os vossos braços compassivos e misericordiosos. Enquanto sobram as lágrimas e os soluços entre os infortunados, nos templos, onde se cultua a vossa memória, transbordam moedas em mãos cheias, parecendo, com amarga ironia, que o dinheiro é uma defecação do demônio no chão acolhedor da vossa casa.

- Então, meu discípulo, não poderemos alimentar nenhuma esperança?

- Infelizmente, Senhor, é preciso que nos desenganemos. Por um estranho contraste, há mais ateus benquistos no Céu do que aqueles religiosos que falavam em vosso nome na Terra.

- Entretanto, – sussurraram os lábios divinos docemente – consagro o mesmo amor à humanidade sofredora. Não obstante a negativa dos filósofos, as ousadias da ciência, o apodo dos ingratos, a minha piedade é inalterável... Que sugeres, meu João, para solucionar tão amargo problema?

- Já não dissestes, um dia, Mestre, que cada qual tomasse a sua cruz e vos seguisse?

- Mas prometi ao mundo um Consolador em tempo oportuno!...

E os olhos claros e límpidos, postos na visão piedosa do amor de seu Pai celestial, Jesus exclamou:

- Se os vivos nos traíram, meu discípulo bem-amado, se traficam com o objeto sagrado da vossa casa, profligando a fraternidade e o amor, mandarei que os mortos falem na Terra em meu nome. Deste Natal em diante, meu João, descerrarás mais um fragmento dos véus misteriosos que cobrem a noite triste dos túmulos para que a verdade ressurja das mansões silenciosas da morte. Os que já voltaram pelos caminhos ermos da sepultura retornarão à Terra para difundirem a minha mensagem, levando aos que sofrem, com a esperança posta no Céu, as claridades benditas do meu amor!...

E desde essa hora memorável, há mais de cinquenta anos, o Espiritismo veio, com as suas lições prestigiosas, felicitar e amparar na Terra a todas as criaturas.

Humberto de Campos

(Recebida em Pedro Leopoldo, a 20 de dezembro de 1935.)


Do livro "Crônicas de além-túmulo" | Francisco Cândido Xavier - Humberto de Campos | FEB
19/03/2011
 


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