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Notícia

Julieta Marques, autora de Chiquito, entrevista Gilmar Trivelato


JM - Considera que seu trabalho profissional é importante para melhor entender a Doutrina Espírita?

GT - Acho que o entendimento da Doutrina Espírita é que tem-me ajudado a compreender melhor o meu trabalho e a realizá-lo de forma a ajudar, de forma mais eficaz, a sociedade. Atuo na área que relaciona saúde, trabalho e meio ambiente, com vistas à proteção da saúde dos trabalhadores e da saúde ambiental. Essa área é essencialmente multidisciplinar e tem uma dimensão material, e ao mesmo tempo social, que exige uma visão integrada, interdisciplinar ou holística. E a Doutrina Espírita nos auxilia a pensar de forma mais abrangente e não estanque, além de acrescentar uma dimensão espiritual. Mas, sem dúvida alguma, o conhecimento técnico-científico adquirido por meio do trabalho nos permite descobrir certos aspectos abordados pelos espíritos que, anteriormente, não tínhamos percebido ou compreendido. Recordo, por exemplo, que somente compreendi melhor a resposta a uma questão de “O Livro dos Espíritos” sobre prevenção de acidentes depois de haver estudado teorias e práticas de gestão de riscos, conhecimento necessário para minhas atividades profissionais. Devo acrescentar também que as habilidades técnicas ou intelectuais desenvolvidas na esfera do trabalho são úteis nas atividades espíritas, e vice-versa. Por exemplo, atuo como educador na minha área profissional e também atuo como educador espírita,  e as habilidades exigidas são muito semelhantes.

 

JM - Pertencendo a uma família com carisma especial, pois seu bisavô foi um pioneiro na região de Sacramento, Estado de Minas Gerais, além de ser primo de Eigorina Cunha, a médium que visitou "Nosso lar", no plano espiritual, como isso influenciou suas atividades no movimento espírita?

GT- Sabemos, através do ensino dos benfeitores espirituais, que as características da personalidade do espírito encarnado, positivas ou negativas, não têm relação com a herança genética. Portanto, nascer numa família com carisma espiritual, tal como você se expressou, não assegura a ninguém qualquer qualidade moral, ou que você herdará o carisma de seus parentes ilustres. Mas nascer numa família com tradição forte espírita, com figuras que foram pioneiras no movimento espírita brasileiro, sem dúvida alguma constitui uma valiosa oportunidade para o espírito reencarnado. Eu considero que essa oportunidade nos foi concedida não por mérito, mas por acréscimo da Misericórdia Divina. Muitas vezes, os espíritos mais necessitados de orientação espiritual e de reajustes morais reencarnam em famílias que contam com espíritos mais experientes, justamente para que possam se beneficiar da influência desses espíritos mais experientes e aprender com os exemplos deles. Esse foi o meu caso! Lembro-me, desde pequeno, das histórias contadas por meus avós maternos sobre as experiências do meu bisavó, “sinhô Mariano” — Mariano da Cunha Júnior —, que iniciou suas atividades espíritas sob a orientação do benfeitor Bezerra de Menezes, quando ele ainda estava encarnado. O que mais me marcou foi seu exemplo de amor à Doutrina Espírita e de fidelidade a seus princípios, demonstrados numa época (final do século XIX e início do século XX) em que ainda era um desafio ser espírita no Brasil. Ele enfrentou muitas adversidades, calúnias, perseguições, mas sempre se mostrou fiel a Jesus e a Kardec. Além disso, ele viveu de uma forma simples, dedicando quase todo o tempo de que dispunha a auxiliar seus irmãos mais necessitados, em particular os doentes do corpo e do espírito. Lembro-me também de muitas histórias de Eurípedes Barsanulfo, sobrinho do “sinhô Mariano”, contadas por meu avô ou tios e tias que conviveram com ele e que foram seus alunos no Colégio Allan Kardec. Essas histórias constituem exemplos vivos de amor e de sabedoria, e elevam Eurípedes à condição de um verdadeiro discípulo de Jesus. Exemplos como esses marcam a nossa mente infantil e, com certeza, servem como estímulo para a nossa atividade no movimento espírita, principalmente nos momentos em que nos sentimos frágeis ou desanimados. Claro que nessas horas também oramos para pedir o amparo desses nossos parentes, que hoje são benfeitores espirituais reconhecidos. Mas também podemos nos sentir envergonhados perante esses benfeitores quando insistimos em percorrer caminhos contrários aos seus exemplos. E esse sentimento de vergonha moral pode ser o ponto de partida para a revisão de nossas atitudes e de buscar seguir seus exemplos.

 

JM - Em seu curriculum, vemos que é doutor em Ciências Ambientais. Que podemos nós fazer, como espíritas, para ajudar a sensibilizar não só os espíritas ainda adormecidos para esses problemas, mas os que estão fora do Espiritismo?

GT- A crise ambiental atual é um exemplo claro da lei de causa e efeito, que é uma das leis de Deus, e constitui um dos princípios básicos da Doutrina Espírita. Os impactos negativos sobre o meio ambiente que estamos a observar na atualidade não são obra de Deus. São consequências diretas do estilo de vida que a humanidade escolheu, marcado pelo egoísmo. Estima-se que o planeta Terra, com os recursos naturais existentes e auxílio dos conhecimentos científicos e tecnológicos que Deus permitiu que o homem construísse, é capaz de assegurar uma boa qualidade de vida para uma população de até cinco vezes a atual, se o homem decidir a explorar esses recursos de forma racional e baseada na lei de amor. Mas se a humanidade insistir em trilhar o caminho do egoísmo, esses impactos se intensificarão e afetarão a vida de todos os habitantes do planeta, quer sejam do hemisfério norte ou sul, ricos ou pobres, de qualquer etnia, religião ou ideologia. Claro que os mais pobres sofrerão mais, mas ninguém escapará! Isso obrigará o homem a rever seu modo de vida, se quiser continuar a viver neste planeta. Quanto antes mudar seu comportamento, no sentido de aderir à lei do amor e uso racional de seu habitat, menor será a extensão desses impactos. A escolha é nossa e o momento é crítico, não temos tempo a perder. Mas sou um otimista! Não acredito que algum dia haverá destruição global da vida humana no planeta, ou mesmo de toda a biosfera. A Terra é um projeto de Jesus e de sua equipe de espíritos angélicos, que não permitirão que esse projeto em andamento há quase cinco bilhões de anos seja interrompido por nossos atos insanos. Eles estão velando pelo planeja e agirão no momento oportuno para salvaguardar a vida na Terra. Sem dúvida alguma, poderemos sofrer consequências muito graves, que poderão implicar redução significativa da população encarnada e uma degradação temporária da condição de vida no planeta. Como o espírito é imortal, isso obrigará uma parcela significativa dos espíritos que habitam o orbe terrestre a buscar outras moradas na casa do nosso Pai celestial, que são muitas conforme disse Jesus. E Jesus também deixou claro no sermão da montanha quem herdará a Terra!!  E cada um terá uma morada de acordo com seus méritos, seja aqui na Terra ou em outro orbe!

Mas podemos evitar ou atenuar tragédias maiores se mudarmos nosso estilo de vida atual. Isso exigirá de cada um de nós mudança de comportamento, que se inicia com mudança de mentalidade. O ponto de partida é a conscientização de que os problemas que estamos a enfrentar, tais como as catástrofes naturais ou escassez de recursos essenciais, que tendem a aumentar, não constituem fatalidades. São consequências de nossos atos e podemos alterar o curso dos acontecimentos. Iniciativas coletivas são importantes, mas não precisamos esperar as decisões ou ações coletivas para isso, podemos desde já dar nossa contribuição individual. Basta que cada um paute seu estilo de vida de acordo com as leis divinas, ensinadas pela Doutrina Espírita e sintetizadas no Evangelho de Jesus, na lei de amor. Basta viver com simplicidade.  O estudo do Evangelho de Jesus, sem dogmatismo, e principalmente à luz da Doutrina Espírita, poderá promover a mudança de mentalidade e hábitos, com benefícios diretos para o ambiente espiritual e físico do planeta.

 

JM - Deviam os centros espíritas realizar trabalhos de esclarecimento a respeito do meio ambiente?

 GT - A minha sugestão é que os grupos espíritas incluam cada vez mais temas relacionados ao problema ambiental nas palestras públicas e cursos, em particular para o público mais jovem e crianças. Deve-se mostrar claramente a relação entre nosso estilo de vida atual e os impactos ambientais negativos, assim como a necessidade de mudanças urgentes, a começar por nós. Deve-se deixar claro também que o desenvolvimento sustentável somente é possível baseado na lei de amor. Fora dela, as consequências para o meio ambiente e os humanos serão negativas e a vida se tornará insustentável.

 

JM - Foi também coordenador de estudos de grupo de jovens. Seria então favorável a um trabalho de educação do ambiente com base na Doutrina Espírita?

Não sou apenas favorável, considero a educação ambiental com base na Doutrina Espírita  uma tarefa URGENTE. Recentemente, a Federação Espírita Brasileira publicou o livro Espiritismo e Ecologia, cujo autor é o jornalista André Trigueiro, apresentador do “Jornal das Dez” (meia-noite ou uma hora da manhã em Portugal), da Globo News. Além de jornalista premiado por sua atuação na área de responsabilidade social e desenvolvimento sustentável, ele é espírita estudioso e praticante, e escreveu essa obra pioneira. Segundo esse autor, tanto o Espiritismo quanto a Ecologia oferecem ferramentas importantes para a compreensão da realidade que nos cerca. Espíritas e ecologistas investigam, cada qual ao seu modo, as relações que sustentam e emprestam sentido à vida. Defendem uma nova ética, mais comprometida com interesses coletivos, e uma atenção maior com o planeta que nos acolhe. Trata-se de uma contribuição importante a ser estudada e discutida em nossos grupos espíritas, e também  uma iniciativa  a ser imitada e ampliada por outros profissionais espíritas que atuam na área de meio ambiente.

 

JM - De que se compõe seu trabalho espírita  no Hospital Espírita de Belo Horizonte?

BT - Participo de um grupo de voluntários que faz o estudo do Evangelho de Jesus com os pacientes internados, que são dependentes químicos. Há várias equipes, mas pertenço à equipe das segundas- feiras à noite.  A reunião tem a duração de uma hora. Ao chegarmos no setor dos dependentes químicos, vamos aos quartos e áreas de convivência e convidamos todos para participar do estudo. A participação é voluntária, pois não podemos impor o Evangelho ou a Doutrina Espírita. Nosso benfeitor espiritual Emmanuel nos adverte que não podemos violentar consciências. Muitos que não participam na primeira vez,  podem participar de outra, em conseqüência da influência positiva que a reunião tem em seus colegas. A reunião é simples, marcada pelo diálogo, onde os internos têm oportunidade de participar livremente. O foco é o aspecto moral do Evangelho, mas introduzimos também comentários de princípios espíritas. Atualmente, o estudo está centrado nas “bem-aventuranças”, capítulo V do Evangelho de Mateus. Nem todos são espíritas, temos que ter cuidado para não ferir susceptibilidades religiosas. Trata-se de um trabalho de via dupla, pois não só transmitimos conhecimentos evangélicos como também aprendemos com as experiências deles. As reuniões correm de forma tranquila. Vez ou outra, encontramos alguma dificuldade, principalmente quando a reunião ocorre depois de feriados, como o Carnaval, por exemplo. Mas sempre contamos com a proteção espiritual e nunca tivemos nenhuma situação de emergência ou que não pudesse ser contornada.

 

JM -  Sua vivência com nosso Chico Xavier  deve tê-lo marcado profundamente. Quer nos contar algum, ou alguns episódios, com o grande médium?

GT - Lembro-me perfeitamente das primeiras vezes que tive contato com o nosso querido Chico. Eu morava na zona rural do município de Frutal, próximo a Uberaba, mas tínhamos parentes que viviam naquela cidade. Sempre que minha avó materna visitava nossos parentes em Uberaba, eu a acompanhava. Às vezes, a visita durava mais de um mês, tantos eram os  parentes que minha avó tinha que visitar. E nesse período sempre íamos à Comunhão Espírita Cristã (CEC), onde o Chico atendia. Nessa época, eu contava com menos de dez anos de idade e não tinha noção exata da importância da figura de Chico Xavier para a Doutrina Espírita. Lembro-me apenas da sua doce figura, pois ele adorava crianças,  e que ele usava uma boina (na época ainda não usava peruca). A Comunhão ficava na periferia de Uberaba, que não tinha iluminação pública e nem acesso por transporte coletivo. Tínhamos que caminhar muito e usar uma lanterna para iluminar o caminho. O fato mais curioso de que me recordo dessas visitas é o perfume que emanava das águas fluidificadas na CEC. Levávamos uma garrafa de água para ser fluidificada, que era colocada na câmara de passes. Na maioria das vezes, a água adquiria um odor de rosas especial! Eu ficava encantado com tudo aquilo!

Na minha adolescência, eu vivia na cidade de Frutal, mas sempre ia a Uberaba e ficava na casa de um companheiro espírita, o Sr. Earle de Oliveira, que na época era o secretário da Comunhão Espírita Cristã e, portanto, muito próximo do Chico. Eu era amigo de seus filhos, em particular do André Luiz, que era da minha idade, e sempre ia com eles na reunião de estudo da Mocidade Espírita da CEC, que funcionava das cinco às seis e meia da tarde dos sábados. Era o dia em que o Chico atendia em reuniões públicas. Mas as portas da Comunhão somente se abriam para o público às sete da noite. Entre seis e meia e sete, o Chico entrava na sala de reunião e ficava a conversar com os companheiros que o auxiliavam e com os jovens da Mocidade. Sempre que o cumprimentava, ele me perguntava sobre o movimento e os companheiros espíritas de Frutal. Nesses contatos, eu ficava muito tímido, não sabia muito o que dizer e me limitava a ouvir as conversas que ele mantinha com os outros companheiros.  Durante a reunião, ele psicografava em público, sentado na cabeceira de uma mesa retangular, e enquanto desenvolvia o trabalho de psicografia vários companheiros sentados à volta da mesa se revezavam a fazer comentários de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” até o momento em que ele terminava de receber as mensagens. Depois ele passava a ler as mensagens recebidas — mensagens doutrinárias de Emmanuel ou de André Luiz, poemas de Maria Dolores ou de outros benfeitores, e cartas de desencarnados para os seus familiares, em geral de filhos para mães. Várias vezes eu presenciei cenas em que familiares ficavam surpresos com as revelações das mensagens  e começavam a chorar de emoção. A maioria não tinha tido oportunidade de conversar com o Chico antes da reunião. É algo inesquecível e difícil de contar os detalhes.

Certo sábado, havia poucos trabalhadores para os comentários do Evangelho e eu fui convidado a participar da mesa. Tinha apenas dezesseis anos e a emoção e a timidez eram grandes. Já naquela época fazia alguns comentários no centro espírita que frequentava, mas fazer comentário sentado ao lado do Chico, enquanto ele psicografava, era algo demais para mim! Cumpri minha obrigação, mas cometi uma gafe! Nos meus comentários, quis me referir ao tempo de Jesus e usei a expressão “Há mais de dois mil anos” quando queria dizer “Há quase dois mil anos”. Só me lembro disso, de tão nervoso que fiquei! Mas a emoção que senti, jamais vou esquecer...

Outro fato interessante de que me recordo, e que gostaria de registrar nesta entrevista, foi quando visitei o Chico em 1975, em companhia do Sr. Spártaco Ghilardi e de alguns jovens da Mocidade do Grupo Espírita Batuíra, de São Paulo. Nessa época, o Chico já atendia no Grupo Espírita da Prece, pois já havia rompido com a Comunhão Espírita Cristã. Era um sábado de muito sol e calor, e no período da tarde acompanhávamos o Chico nas famosas peregrinações às casas simples que ficavam nas redondezas do Grupo. Durante as visitas, ele abria o Evangelho, lia um pequeno trecho e fazia breves comentários. Depois era seguido por outros companheiros que ele solicitava que também fizessem um breve comentário sobre o tema. Nesse dia, vi que uma mosca enorme pousou em seu rosto quando ele fazia a leitura e os comentários. A mosca passeava silenciosamente sobre sua face...,Ao observar aquilo fiquei muito aflito com a cena, tinha vontade de ir lá e fazer algum gesto para espantar a mosca, pois achava  que ela estava a lhe incomodar. Mas Chico se mostrava impassível, sem qualquer gesto em relação à mosca, até o momento que ela decidiu ir embora por conta própria. O incomodado era eu! Isso me fez lembrar de imediato uma estória narrada pelo espírito Hilário Silva, psicografada pelo Chico, em que um homem provocou seu desencarne ao tentar matar uma mosca que pousara em sua careca. Com a pancada na cabeça, houve ruptura de uma artéria, provocando um aneurisma cerebral. Chico havia aprendido a lição, eu não! Comecei a rir silenciosamente, comigo mesmo!

Uma das cenas mais emocionantes que presenciei foi durante uma visita ao Grupo Espírita da Prece, ainda na década de 1970. Era uma noite de sábado e o número de pessoas presentes era enorme. Enquanto Chico psicografava, permaneci na área externa, em um alpendre, conversando com uma grande amiga do movimento espírita do Triângulo Mineiro, com quem tinha compartilhado muitas atividades na área de evangelização da criança. Quando o Chico havia terminado a leitura das mensagens, e ia começar a o atendimento ao público, percebi que um jovem de vinte e poucos anos se aproximou da área de entrada do salão com um grupo de crianças. Disse a um dos responsáveis pela organização dos trabalhos que havia trazido as crianças para fazer uma apresentação musical ao Chico. O rosto me era familiar. Passado alguns instantes reconheci que era o Marcelo (não sei se esse é o seu nome exato) e que eu o tinha conhecido quando participamos juntos de curso destinado a evangelizadores de crianças, há alguns anos. Ele era um pouco mais velho do que eu, e quando o conheci tratava-se de um rapaz de rara beleza, e me recordo que era de fazer inveja aos rapazes da época. Mas seus gestos demonstravam claramente sua orientação homossexual. Percebi que ele estava um pouco diferente, um tanto exótico, com cabelos pintados de uma cor diferente, e parecia que havia delineado as sobrancelhas e marcado o contorno de seus olhos com lápis. A sua expressão era de cansaço.  Lembrei-me de sua fisionomia anterior e, na minha  maldade, pensei: Que decadência!! Mas continuei a observar o que se passava. Ele tentava convencer o responsável pela organização dos trabalhos que tinha que fazer logo a apresentação para o Chico, pois que as crianças estavam com sono. O senhor argumentava com visível má vontade  que não era possível.

Passados alguns minutos, para a minha surpresa, vi que o Chico abandonou o salão cheio de visitantes,  se dirigiu ao alpendre e veio ao encontro do Marcelo e do grupo de crianças. Felizmente, eu estava bem próximo e era um espectador privilegiado. Chico estendeu os braços e deu um carinhoso abraço em Marcelo, seguido de dois beijos na face, e sorria encantado com a presença das crianças. Marcelo lhe explicou que se tratava da turma de crianças a quem ele dava aulas de evangelização, numa área pobre próxima ao Grupo Espírita da Prece, e que ele havia ensaiado algumas músicas com as crianças,  as quais gostariam de fazer uma apresentação especial para ele. Ele respondeu: “Que maravilha, meu filho, que Jesus te abençoe. Você não imagina a alegria que eu sinto com a presença de vocês. Não sou merecedor de tamanha demonstração de carinho”. Depois de enaltecer o seu trabalho de evangelizador das crianças, pediu que iniciasse os números musicais. As crianças começaram a cantar! Para surpresa geral, elas cantavam de forma extremamente desafinada, um atentado musical mesmo para leigos em matéria de música... Às vezes, elas esqueciam algum trecho da letra da música e eram auxiliadas pelo Marcelo, que às vezes se mostrava um pouco nervoso com o desempenho dos miúdos... Ao fim de cada número, Chico sempre  elogiava: “Que maravilha! Que trabalho maravilhoso foi ensinar essas crianças a cantar!“  Percebi que as outras pessoas que estavam nas proximidades pareciam incomodadas e querendo entender por que o Chico elogiava tanto aquele desempenho tão sofrível, na nossa opinião. Mas Chico insistia: “Cantem mais uma música para o tio Chico! Vocês não imaginam a minha alegria em ver vocês cantarem!“ E as crianças cantaram mais alguns números, cuja qualidade musical era precária aos ouvidos dos demais presentes! Depois de quatro ou cinco apresentações, Chico abraçou e beijou cada um dos miúdos. e mais uma vez abraçou Marcelo, agradecendo o presente e dizendo que Jesus estava abençoando seu trabalho! A apresentação durou cerca de meia hora e eu nunca tinha presenciado uma expressão de tamanho carinho e reconhecimento, tal qual a que o Chico demonstrou para com aqueles miúdos e seu evangelizador. Eu estava simplesmente emocionado e envergonhado de meus julgamentos preconceituosos, feitos minutos antes, mas não deixei de registrar a expressão de espanto dos demais companheiros que também assistiram à cena. Depois disso, Chico voltou ao salão principal e passou a receber os cumprimentos de cada um que ali estava e que vinham, na realidade, buscar uma palavra de auxílio espiritual. E eu não pude deixar de lembrar a passagem evangélica “Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais...”

Outro fato marcante de que recordo bem ocorreu no ano de 1981, quando lançaram a candidatura de Chico ao Prêmio Nobel da Paz. Naquele ano, eu tinha passado por um processo de seleção para ser professor na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, Moçambique. Mas estava muito inseguro. O processo de seleção foi rigoroso, pois o governo revolucionário, sob influência soviética, fazia uma triagem ideológica, com receio de contratar espiões entre os futuros docentes. Além do trabalho profissional, eu queria fazer um trabalho espírita naquele país, mas não tinha a menor ideia de como isso poderia acontecer. Soube que o Chico estaria no Centro Espírita União, em São Paulo, por ocasião da semana em homenagem a Kardec, organizada pelo casal Galves, que dirige aquele grupo. Dispus-me a enfrentar uma enorme fila, mesmo que tivesse que ficar até o amanhecer do outro dia, e falar com o Chico. Eu queria ir, mas iria  perguntar a opinião dele, se eu deveria ir ou não. Somente mais tarde percebi a minha ingenuidade! Antes de começar os atendimentos, houve uma sessão pública, presidida pela Nena Galves. Quando o Chico começou a falar para os presentes, alguém trouxe a notícia de que havia sido divulgado pela televisão o vencedor do Prêmio Nobel da Paz daquele ano. O escolhido não foi o Chico e sim uma organização de direitos humanos, a qual não me recordo o nome. Ao saber da notícia, e depois de agradecer os companheiros que tiveram a iniciativa de indicá-lo e elogiar o mérito da organização selecionada para a premiação, ele comentou com um senso de humor refinado: “Se não temos o Prêmio da Paz, temos a paz do prêmio”. Pude confirmar naquele momento algo que já desconfiava. Aquela campanha tinha incomodado muito o seu espírito humilde e que ele então ele estava finalmente em paz.

Quando consegui falar com o Chico já era madrugada. Expus-lhe os meus planos de ir a Moçambique e o desejo de fazer um trabalho espírita por lá, que queria ir, mas estava um pouco inseguro. Ele me respondeu: “Vá meu filho, você vai fazer muita gente feliz por lá! Aqueles irmãos nossos precisam de muito apoio. Mas recomendo que você converse antes com o nosso amigo Jô (Joaquim Alves), pois ele morou em Maputo e conhece bem o movimento espírita de lá”. Depois desse breve encontro, procurei o Jô conforme ele me havia recomendado e decidi ir trabalhar naquele país. Uma semana antes de embarcar, já com todos os documentos e bilhetes de viagem em mãos, estourou a Guerra Civil em Moçambique e Maputo ficou sitiada. Diante dessa circunstância, e de outros problemas familiares que me preocupavam, decidi não ir. Mas aprendi a lição dessa experiência: quando alguém procurava o Chico dizendo que queria fazer alguma coisa, ele nunca contrariava a opinião dessa pessoa. Nunca dizia “não faça isso” e sempre encorajava o projeto dela. Poderia, no máximo, fazer alguma ponderação como a recomendação que me fez de procurar o Jô. Por isso temos que tomar cuidado quando alguém diz que o “Chico disse” para fazer isso ou aquilo. Na realidade, a pessoa já tinha uma decisão e queria apenas a aprovação do Chico. E ele nunca contrariava o livre-arbítrio  daqueles que já vinham com uma posição definida e sempre incentivava seus projetos. Somente em casos de saúde ele fazia recomendações mais objetivas, geralmente indicando que a pessoa deveria buscar os recursos da medicina da Terra, inclusive indicando algum profissional de sua confiança, mesmo que ele não conhecesse pessoalmente. No caso de uma irmã, que tinha problemas sérios de infecção de ouvido, ele recomendou procurar um cirurgião especializado na cidade de Campinas. Quando minha mãe disse ao médico que foi o Chico Xavier quem lhe havia recomendado, ele ficou surpreso e emocionado. Ele confessou nunca ter tido qualquer contato com o Chico ou pessoa que lhe fosse próxima. E a intervenção cirúrgica foi um sucesso.

JM - Que nos pode dizer  sobre a obra psicográfica de Chico Xavier?


GT - Em poucas palavras, posso dizer que a obra psicográfica de Chico Xavier é um projeto da Espiritualidade Superior, com o objetivo de completar os ensinos trazidos pelos espíritos e codificados por Allan Kardec, além de reforçar a importância do Evangelho de Jesus para a Doutrina Espírita, embora algumas correntes que se dizem espíritas insistam a diminuir a importância de Jesus para o Espiritismo.

Nesse projeto, é evidente que Chico Xavier é o elemento central, mas trata-se de um trabalho em equipe, que contou com um grupo de benfeitores espirituais, Chico Xavier, seus companheiros próximos de Pedro Leopoldo, a direção da Federação Espírita Brasileira e da União Espírita Mineira, além de outros inúmeros companheiros espíritas, cujo número aumentou com o tempo. Mas tudo aconteceu sob a supervisão do sábio benfeitor espiritual Emmanuel. Segundo o Chico, e companheiros próximos, quem sempre deu a última palavra sobre qualquer obra foi Emmanuel. A partir de 1935, nada foi publicado sem a sua revisão ou autorização.

Para fins didáticos eu costumo organizar a produção mediúnica de Chico Xavier em três fases. A primeira fase eu chamo de “fase de afirmação do mandato mediúnico”, que se inicia com a publicação do “Parnaso de Além-Túmulo” e termina com a publicação do livro “Nosso lar”, de André Luiz. Essa fase inclui, além do “Parnaso...”, as obras de Humberto de Campos e os quatro primeiros romances históricos de Emmanuel. A análise do estilo literário ou do conteúdo dessas obras são evidências incontestáveis da autenticidade do fenômeno psicográfico. Somente depois dessa fase é que se inicia a fase que denomino “fase doutrinária”, porque o foco é explicar a Codificação ou complementá-la em alguns aspectos. Essa fase é iniciada com a publicação do livro “Nosso lar”, que inicia a série dos livros de André Luiz. Além dessa série, essa fase inclui a produção de obras que são estudos do Evangelho e da Codificação realizados por Emmanuel e de outras obras importantes de outros benfeitores espirituais, como as crônicas de Irmão X ou de Hilário Silva, o livro “Voltei”, dentre outros. Essa fase inclui os livros que foram publicados até aproximadamente 1970, sendo um dos últimos dessa fase o livro “Vida e sexo”, de Emmanuel. A terceira fase, que se intensifica a partir de 1970, caracteriza-se pelas obras de consolação (ou de autoajuda, em terminologia atual), com mensagens mais simples, dirigidas a um público não exclusivamente espírita, ou mensagens de entes queridos desencarnados para os seus familiares. Essa fase coincide com o período em que Chico se tornou uma figura da mídia, em particular da televisão.

Sem sombra de dúvida há muitas outras obras psicográficas recebidas por outros médiuns, que constituem verdadeiros tesouros para a Doutrina Espírita como, por exemplo, “Memórias de um suicida”,  entre outras. Mas nenhuma outra produção psicográfica da atualidade apresenta, em seu conjunto, as características que mencionei anteriormente, isto é, uma fase de afirmação do mandato mediúnico, que precede e sustenta uma fase de produção doutrinária ou de consolação. Outra coisa importante a destacar é fato de que Chico Xavier teve o cuidado de não auferir qualquer vantagem pessoal com sua obra psicográfica e de doar os direitos autorais das obras de maior densidade doutrinária a editoras cuja finalidade é a própria divulgação da Doutrina em si, e não a obtenção de recursos para manter obras sociais, mesmo que louváveis. Não temos nada contra o fato de recursos obtidos através de uma publicação espírita dar suporte a um projeto social. O próprio Chico fez doações de direitos autorais para várias organizações assistenciais, principalmente de obras que visavam a consolação, a autoajuda, mas não de obras com novidades doutrinárias. Ao contrário do que ocorreu na missão de Chico Xavier, um paradigma de médium espírita, o que infelizmente assistimos hoje no Brasil é uma explosão de publicações de obras psicografadas que não têm elementos que permitam atestar a autenticidade mediúnica, sem a existência de qualquer mecanismo que assegure a qualidade dessas produções e cuja finalidade parece ser apenas a manutenção de obras assistenciais e não o crescimento da Doutrina. Costumo dizer que para garantir o pão do corpo estão a sacrificar o pão do espírito.

 

JM -  Sua vinda a Portugal, em serviço profissional, permitiu-lhe o contato com algumas casas espíritas. Considera que existam diferenças entre o que se faz no Brasil em termos de divulgação?

GT - Tive a oportunidade de combinar o trabalho profissional com o trabalho espiritual. Felizmente, meu trabalho me permite isso. Dessa forma, busco me inspirar no exemplo do apóstolo Paulo, que através do seu trabalho de tecelão ambulante assegurava a divulgação do Evangelho, e contou com a hospitalidade de alguns companheiros dos locais que visitava, mas sem constituir um peso a eles. E fiquei muito feliz de conhecer o movimento espírita português, em reconhecer seu dinamismo, mais do que eu poderia supor, antes da minha visita. As casas espíritas que visitei desenvolvem atividades de forma muito semelhante às casas espíritas brasileiras que conheço, em particular em matéria de divulgação. Claro que não observei homogeneidade, mas isso também não se verifica no Brasil, e nem sei se é desejável. O que é importante é a fidelidade a Jesus e aos princípios básicos da Codificação, o que pude constatar. Claro que identifiquei algumas dificuldades. Mas problemas nós encontramos em todos os lugares onde pessoas se associam para um determinado fim, quer seja uma atividade religiosa ou não, e isso não deve nos desanimar da boa luta. Até a equipe organizada por Jesus tinha problemas. E os problemas que me relataram que existem nas casas espíritas portuguesas são os mesmos que enfrentei quando dirigi grupos de médio ou pequeno porte no Brasil. Quase sempre são resultantes do nosso orgulho e egoísmo. Por isso, o objetivo principal da Doutrina é a nossa reforma íntima, de forma a mudar os nossos hábitos, em consonância com o Evangelho, o que constitui um desafio em qualquer parte do mundo.





Enviado por Geraldo Lemos Neto - Vinha de Luz- Serviço Editorial
13/01/2010
 


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